Alegadamente inspirado no modelo norte-americano, o deputado socialista Ricardo Rodrigues apresentou uma proposta para a criação da figura de um procurador especial junto da Assembleia da República. Porém, todos os juristas contactados pelo DN - juízes, procuradores, advogados e académicos - levantam sérias dúvidas quanto à legalidade da ideia. António Barradas Leitão, advogado e membro do Conselho Superior do Ministério Público, alerta mesmo para os perigos de perseguição política consoante a maioria que esteja no poder.
Em declarações ao DN, o advogado considerou que "o problema da proposta" reside na eventualidade de o "poder político querer entrar em matérias de competência exclusiva do poder judicial". Isto porque, anteontem, Ricardo Rodrigues adiantou que, quando uma comissão parlamentar de inquérito conclua pela existência de indícios de crime, o Parlamento poderá nomear um procurador especial para proceder à investigação criminal.
"Tal proposta não tem tradição no nosso ordenamento jurídico pelo menos desde o Estado Novo. Nesse tempo é que havia uma mistura entre a acção penal e o Governo", reforça António Barradas Leitão. Até porque ao tipificar os crimes passíveis da intervenção do procurador especial - responsabilidade de titulares de cargos políticos, combate ao terrorismo, crimes previstos pelo Tribunal Penal Internacional, homicídio de titulares de órgãos de soberania e atentados contra o Presidente da República - está ao mesmo tempo a criar uma espécie de tribunal especial, o que é contrário à Constituição da República.
"Os objectivos do Parlamento e dos tribunais são diferentes: uma comissão parlamentar de inquérito apresenta uma conclusão política sobre determinado assunto, nos tribunais exige-se prova com valor penal", declarou ao Diário de Notícias José Fontes, politólogo que tem estudado as relações entre o Parlamento e o sistema judicial português.
Na opinião deste professor da Universidade Aberta, é "um dado assente que o modelo das comissões parlamentares de inquérito deve ser reformulado", mas esta reconfiguração não deverá passar pela "criação de novas instâncias que só irão provocar conflitos", por um lado, e, por outro, "levantar a desconfiança sobre o procurador-geral da República", que é nomeado pelo Presidente da República sob proposta do Governo. E é também sobre o papel que o PGR terá, caso a proposta avance, que António Cluny, presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (SMMP), coloca uma das suas críticas: "No fundo, está-se a diminuir os poderes do Presidente da República." Ao DN, separou a análise pelas propostas em cima da mesa: "A do PS viola a separação de poderes, a do PSD é inconstitucional porque colide com a autonomia do Ministério Público."
Recorde-se que os sociais-democratas defendem que na sequência de comissão de inquérito em que esteja em causa o homicídio do Chefe do Estado, do presidente da Assembleia da República ou do primeiro-ministro, a "acusação do Ministério Público é obrigatória", tal como referiu o deputado Montalvão Machado na comissão de assuntos constitucionais.
Compulsadas as dúvidas, António Cluny declarou: "Se, no futuro, o modelo vier a ser mal utilizado há o risco de degenerar em comissões tipo McCarthy", numa alusão às comissões de inquérito promovidas nos anos 50 pelo senador norte-americano Joseph McCarthy e que se tornaram numa autêntica caça aos comunistas."Qualquer procurador especial fora do corpo do Ministério Público, e sobretudo sujeito a critérios de natureza política, ficará afectado na sua independência. E gerará ou poderá gerar desconfiança na acção penal, parcialidade na decisão de acusar ou arquivar e dúvidas sérias na conclusão da investigação". É com esta argumentação que Carlos Pinto de Abreu, presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados, se junta ao coro de chumbos à proposta do deputado do PS Ricardo Rodrigues.
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