Enquanto persiste uma estranha omissão geral no importantíssimo debate público sobre a reforma do mapa judiciário, acaba de ser repescado o tema, algo gasto, da contingentação processual.
Com esta, que parece ciclicamente ressuscitada como manobra de diversão, pretender-se-ia ver fixado por decreto o volume de processos que cada magistrado pode, num dado período de tempo, ter a seu cargo. Limitar-se-ia, assim, a atribuição de novos processos para além desse volume.
Se bem entendo, uma vez preenchido o contingente de cada magistrado, cada novo processo que lhe devesse ser atribuído ficaria em lista de espera até abertura de vaga na respectiva quota de capacidade. No panorama actual da justiça portuguesa, com as suas várias assimetrias (des)organizativas, a ideia é, entre outras considerações, virtualmente inútil e especialmente perversa.
É inútil por já existir uma óbvia "contingentação natural", avulsa, que corresponde à capacidade individual de produção de cada magistrado, cuja maior ou menor utilização, enquanto métrica de avaliação do desempenho e distinção individual, é muito pouco ou nada valorizada nas inspecções e classificações de serviço dos juízes. Depois é ainda mais inútil porque, alimentada por esta desvalorização da produtividade, está sedimentada uma outra contingentação, artificial, qualificável como "contingentação funcional espontânea". Filha da convicção geral de que o esforço individual acrescido não oferece qualquer prémio, esta contingentação, instintiva e dissimulada, dita que basta que a comarca não pareça afundar-se muito mais para que também não haja qualquer penalização na classificação de serviço. Ligando a condição humana da magistratura judicial - a mais castigada das profissões do foro - às piores entro- pias do sistema, esta contingentação é estatisticamente verificável pela existência de um bitola média apontando que, independentemente da enorme disparidade do número e natureza de processos entrados anualmente em cada tribunal, o número dos que anualmente findam tende a fixar-se sempre entre 90% a 95% daqueles. Isto é, se numa qualquer comarca onde entrem mil processos é quase certo que o número de processos findos no mesmo ano estará entre 900 e 950 e numa outra comarca onde entrem 500 processos é quase certo que no mesmo ano o número de processos findos só estará entre 450 e 475, já numa terceira comarca onde entrem apenas 200 processos não é menos certo que o número de processos findos não será, como abstractamente podia e devia ser, de 900 ou 950, nem de 450 ou 475, mas apenas de 180 ou 190.
Finalmente, a ideia é ainda especialmente perversa quer por se limitar a cuidar de efeitos pontuais e não das causas do mal, quer por reforçar a evidência trágica de que o sistema, ao contrário do que devia, não está voltado para servir as necessidades dos cidadãos, seus destinatários, mas está construído em função dos que nele actuam profissionalmente.
In DN
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