Corria o ano de 2000, quando foi publicado no DR a minha 1ª nomeação (provisória). Sendo esta nomeação oficiosa (Art.º 46.º, n.º 1 do Estatuto dos Funcionários Judiciais) fui atirado do Norte do país para Lisboa, mais propriamente para o Tribunal de Pequena Instância Cível, pelo menos pensava eu.
Três dias após a publicação, já de malas feitas, fiz-me à estrada e nesse mesmo dia tomei posse no Tribunal de Pequena Instância Cível de Lisboa, Tribunal este em que só entrei nesse mesmodia. Após a tomada de posse, imediatamente fui informado, pelo Ex.mo Sr. Secretário de Justiça, que o meu local de trabalho seria na Secção de Serviço Externo, situada no antigo Tribunal de Polícia (junto ao Palácio da Justiça).
Pensava eu, ainda agora cheguei e já tou a ser "lixado", mas não era caso único.
Eis que chego à Secção de Serviço Externo e após ouvir umas palavritas, do género «este tem bom cabedal», foi-me apresentada a secretária onde iria trabalhar, e entregue o guia urbano da cidade de Lisboa, ficando com as zonas "1, 3, 4, 10, 11, 12, 18, 19, 20, 21" (correspondem a quadriculas do guia urbano) e todo o serviço externo dessas mesmas.
Os processos amontoavam-se em cima e por baixo da secretária, bem como em alguns caixotes.
Foi estabelecido que semanalmente teria que efectuar "x" dezenas de diligências, entre penhoras, citações, notificações, arrolamentos, arrestos, despejos, etc..., variando as dezenas de "x" de funcionário para funcionário. No meu caso era periferia e detinha 10 quadriculas do guia urbano. Contudo, outros haviam que tinha, uma, duas, três, etc... quadriculas do G.U. de Lisboa, variando conforme fosse zona central ou não, pois o volume recebido diariamente era divergente.
A minha zona ía do Bairro das Galinheiras, ao Bairro Padre Cruz e deste ao Lumiar, e daí captando parte da Musgueira Sul e Norte, Bairro da Cruz Vermelha, Ameixoeira, etc...
Tenrinho nas funções e, atirado para o serviço externo, só com enorme esforço consegui entregar as diligências mínimas exigidas. Ainda não estava ambientado com os transportes, nem com a minha área de actuação, mas a trabalhar até às 19, 20 e tal horas lá conseguia alcançar os objectivos pré-estabelecidos.
Trabalho à parte necessitava de consolidar a minha estadia em alojamento que permitisse o mínimo de dignidade habitacional. Instalei-me num quarto.
Nessa altura, auferia mensalmente em média 115.000$00 (€ 573,62) variando em função dos dias úteis o subsídio de refeição, mais trocos, menos trocos.
Pagava pelo quarto 40.000$00 (€ 199,52) e claro habituado a alimentar-me bem e abundantemente, no Minho onde habito, também, minimamente ansiava alimentar-me, mas para tal gastava entre pequeno-almoço, almoço e jantar, mensalmente cerca de 60.000$00 (€ 299,28). Almoção e jantar em pé e/ou virado para a parede num qualquer balcão, decididamente não faz o meu estilo. Para lanche não havia dinheiro, muito menos para algumas mordomias.
Não prescindia também de vir à "terrinha" nos fins-de-semana, para a qual gastava em viagens cerca de 5.000$00 (€ 25,00, números redondos) por cada fim-de-semana (de 20.000$00 a 25.000$00/mês). A vontade de deixar a capital era intensa, e quase tudo aqui também existe, considerando que vivo em Guimarães, a poucos minutos de Braga, V. N. Famalicão, Fafe ou mesmo Porto.
Contas feitas, já estava a pagar para trabalhar e assim foi durante vários meses. Paguei literalmente para trabalhar. A vida é dura.
Durante esses meses não adquiri qualquer peça de vestuário ou sapatos. Irrisório ou não, quando me despedi de Lisboa e regressei ao Minho já circulava à dois meses com dois pares de sapatos furados, rotos, chamem-lhe o que quiserem.
Com que moral somos, agora, espezinhados e achincalhados. Não vemos o nosso esforço recompensado, muito pelo contrário somos maltratados e ainda nos chamam de "privilegiados".
Não será o momento dos políticos procederem a um exame de consciência e efectuarem um auto-retrato!?
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