Não fosse a boa vontade dos funcionários judiciais, muitas gravações ficariam por ouvir e ver no Tribunal da Boa-Hora. É que não há aparelhos para gravar e reproduzir CD e DVD com conteúdos importantes para a transcrição da prova feita em julgamento. E são, por vezes, os funcionários que levam o material para casa para realizar essas gravações. A Direcção-Geral da Administração da Justiça não responde a muitos pedidos de equipamento, revelam os funcionários judiciais.Atrás de uma pilha de processos amarrados com um cordel, avista-se uma cabeça. Um homem escreve, debruçado sobre uma secretária, numa sala apertada e quente. A um canto, uma ventoinha roda. O homem transpira enquanto junta os papéis. A seguir coloca uma capa negra sobre os ombros e encaminha-se para uma das salas de audiência.
No átrio em frente, sentadas em bancos corridos encostados a paredes revestidas de azulejos, várias pessoas esperam, impacientes. São arguidos, testemunhas e advogados de um processo cujo julgamento está marcado para aquela manhã. Apagam cigarros e suspiram quando o funcionário se aproxima. Finalmente vão poder entrar. O funcionário tem um papel na mão e lê alto o número do processo, o nome dos arguidos e dos advogados. Depois anuncia que o julgamento foi adiado para o mês seguinte. Ouvem-se exclamações de desagrado, um coro de protestos. Há pessoas que vieram do Porto e de Bragança e ficaram com "o dia estragado". Reclamam directamente com o funcionário, elevando a voz: "Isto é uma vergonha! Parece impossível, é a justiça que temos." O homem aperta os lábios, abstendo-se de responder. Mas a sua expressão é compreensiva."
É sempre o funcionário que leva a pancada. Muito raramente os juízes dão a cara por estas situações", diz um funcionário judicial que pede o anonimato. Como todos os outros que o PÚBLICO contactou. A grande maioria esquivou-se a qualquer contacto com a jornalista e os que acederam a falar fizeram-no sempre sob a condição do off.
Explicam que estão sob a "lei da rolha" devido a uma circular distribuída no final de Março pela Direcção-Geral da Administração da Justiça. Referente à comunicação de "situações anómalas", este ofício assinado pela directora geral, Helena Mesquita Ribeiro, determina que "os secretários de justiça não poderão autorizar a tomada de imagens no interior do tribunal". E, ainda, que "os pedidos de tomada de declarações a funcionários de justiça sobre matérias de serviço deverão ser reencaminhados, por fax, para o Secretariado da Direcção".
O cenário em que os funcionários judiciais trabalham é muito semelhante nas nove varas criminais do Tribunal da Boa-Hora. Gabinetes pequenos e quentes, funcionários a menos, processos a mais. "Os tribunais deviam erguer estátuas aos funcionários que trabalham nestas condições", defende a procuradora Maria do Carmo Peralta.
Compete-lhes a notificação das pessoas para comparecer em tribunal e a requisição de expedientes e de despachos até à fase dos julgamentos. Desempenham, além disso, um papel essencial na sala de audiências. São os responsáveis pelo registo de toda a produção da prova feita em julgamento: as declarações de arguidos, testemunhas, advogados, de todos os intervenientes no processo. Compete-lhes ainda fazer a chamada das pessoas que estarão na sala e esclarecê-las sobre as regras de conduta que têm de seguir durante as audiências. Centenas de volumes em carros celularesA grande complexidade e urgência dos processos que correm na Boa-Hora exige, por vezes, a mobilização em exclusividade de um ou mais funcionários para apenas um processo, como acontece, por exemplo, com o processo da Casa Pia. As dificuldades aumentam face aos julgamentos que se realizam, cada vez com mais frequência, fora das instalações da Boa-Hora devido aos processos com grande número de arguidos que requerem espaços maiores como a mega-sala de audiências instalada no tribunal judicial de Sintra ou nos tribunais de Santa Clara ou Monsanto. O problema que então se coloca é o de que, com cada um desses processos, segue uma parte da secretaria judicial.Alguns desses processos são constituídos por centenas de volumes e apensos apenas transportáveis em meios de transporte de grande capacidade, como as carrinhas celulares e, às vezes, com escolta. Em resposta a esta realidade, o Conselho Superior da Magistratura tem nomeado juízes para suprir as carências resultantes da exclusividade dos magistrados judiciais aos processos de especial complexidade, sem contrapartida de reforço de pessoal.
Os equipamentos obsoletos são outro problema com que os funcionários se debatem todos os dias. Dificultam a gravação da prova e as reproduções. Não há aparelhos para gravar CD e DVD essenciais para a transcrição da prova e, frequentemente, os funcionários levam o material para casa para fazer estas gravações. Em resposta aos pedidos de equipamentos feitos pelos funcionários, a Direcção-Geral da Administração da Justiça remete-os para o Palácio da Justiça e, muitas vezes, nem sequer responde, assegura um dos funcionários ouvidos pelo PÚBLICO que solicita o anonimato. Notando que estes equipamentos "são baratos", refere que "as entradas de alguns jantares que por aí se realizam davam, de certeza, para os pagar".
Numa das salas de audiência, um inspector da PJ depõe. Trata-se de um processo de tráfico de droga. Uma parte do julgamento é feita por videoconferência. É o depoimento de um recluso directamente do hospital prisional. O funcionário aponta o comando na direcção do monitor."Têm de ver aí o sistema de som que não ouvimos a testemunha", diz ao colega."Vamos ligar para o seguinte... Não vou perder mais tempo com isto", afirma o juiz, impaciente. "Tem de telefonar à sua colega para fazer a ligação como deve ser", acrescenta.
O funcionário chama: "Colega, está-me a ouvir?" "Passa ao seguinte... eu hoje não oiço testemunhas", diz o magistrado" Às vezes, ouve-se..."Ligam a Ponta Delgada. "Colega, está a ouvir-me?" "Não foi possível ouvir as testemunhas por deficiência técnica do sistema", dita o juiz para a acta.
Descontentes em relação ao poder político, os magistrados "descarregam" muitas vezes nos funcionários, dizem aqueles que foram ouvidos pelo PÚBLICO. É um fenómeno recente mas nota-se "muito menos tolerância" e "uma tendência para culpabilizar os funcionários pela falta de condições de trabalho", afirmam, acrescentando que se nota uma "impaciência e má vontade como reacção contra o poder político".
O recurso à videoconferência já se vulgarizou na Boa-Hora, mas nem sempre funciona. Numa sala de audiência, um agente da PSP presta depoimento através deste sistema. Há imenso ruído de fundo. "Senhora funcionária, não vemos a cara da testemunha, só os pés", diz o procurador. Volta-se para o funcionário que faz tudo para resolver o problema: "Não se ouve a testemunha, ouve-se muito mal."
O procurador repete três vezes a mesma pergunta: "Os arguidos ofereceram ou não resistência..."
Por Paula Torres de Carvalho (texto), in Público (edição impressa), via Verbo Jurídico
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1 Response to 'É sempre o funcionário que leva a pancada'

  1. João Carlos Mendes da Silva
    http://lexfundamentalis.blogspot.com/2006/06/sempre-o-funcionrio-que-leva-pancada.html?showComment=1150327020000#c115032703815368520'> 15 junho, 2006 00:17

    Cara colega Maria
    Infelizmente muitas são as vezes que são pessoas da nossa própria classe que criam e inventam problemas aos restantes colegas.
    Como diz o ditado: "Quem tem amigos assim não precisa de inimigos".
    Ser chefe é conseguir chefiar, não é ser senhor absoluto, é saber gerir o trabalho com os meios de que dispõe.
    Para além deste problemas com os próprios colegas, cada vez vemos mais os quadros reduzidos. Carrega-se mais um bocadinho os "burros" e eles aguentam, e depois voltam a carregar mais um bocadinho os "burros" e eles aguentam, e por aí fora.
    Só de pensar que trabalhava até às 20,21, 22 horas e por aí fora, por vezes aos Sabados e Domingos até me dá arrepios. Mas já bastava de ser burro e agora saio do Tribunal com a consciência tranquila. Quando lá estou trabalho arduamente, mereço todos os cêntimos que ganho e mais não devo.
    Hoje em dia comparo os Tribunais a Casa de Saúde.
    Vivamos a vida, não podemos cair em loucura.