Não se irritem comigo os milhares, muitos milhares, de autarcas, desde Trás-os-Montes aos Açores ou à Madeira, sejam presidentes de câmara, de freguesia, de assembleia de freguesia, vereadores, deputados municipais, quiçá conselheiros, adjuntos, assessores, secretários de assessores, chefes de gabinete - essa chusma de gente «inventada» pela democracia e que nestes 32 anos de vigência já deu para ver que irrita, persegue, esbanja, falcatrua, mente, engana, põe, enfim, o país de tanga.
O insuspeito socialista António Barreto, no retrato da semana de 1 do corrente, no Público, sob o título de «a chantagem autárquica» não só escreveu as palavras que chamei a titulo desta crónica, como disse mais: «das duas uma: acabe-se com a autonomia e transformem-se as câmaras em meras agências locais do governo central. «Na verdade – prossegue aquele ex-ministro do PS – a democracia local foi motivo das esperanças de todos. E não faltou o mito: poucos anos depois do 25 de Abril, passou a ser praxe dos discursos oficiais dizer-se que «o poder local era a maior conquista da democracia». Ainda hoje, essa frase sem sentido, é repetida. Sobretudo por autarcas, pois já ninguém acredita nisso. A maior desilusão da democracia portuguesa é o poder autárquico. É possível que não seja o problema mais grave, dado que outros, aparentemente impossíveis de resolver, como os da justiça e das finanças públicas, afectam mais profundamente a vida colectiva. Mas o termo desilusão é o que melhor se aplica aqui». António Barreto pretendeu nesse retrato da semana censurar a actuação de Fernando Ruas (PSD), presidente da ANM que «mostra até que ponto está errada a concepção de poder local. Este transformou-se numa rede de interesses partidários e económicos, de amigos de vária espécie, de negócios e de recrutamento político. Esta rede recorre, frequentemente, a acções ilícitas e irregulares. O enriquecimento sem justa causa, o emprego de amigos e familiares, a acumulação indevida de cargos e vencimentos, o licenciamento por favor, são moeda corrente neste tão bem organizado poder autárquico. Dizem que também há autarcas honestos. É possível».Se não fosse um socialista a escrever o que fica transcrito, iriam já os meus habituais maldizentes acusar-me de reaccionário. A esses aconselho a ler aquele naco de prosa escorreita, lúcida e oportuna de António Barreto. Porque ele sabe bem do que fala. Com a revolução de Abril nasceu, como que por geração espontânea, uma casta de gente que, em 32 anos, já se ramificou em todas as esquinas. Uma nova forma de ganhar a vida e de que maneira! Conhecem Fátima Felgueiras? Valentim Loureiro? E tantos como eles que tiveram a «sorte» de (ainda) não serem chamados à pedra, mas que os há bem perto da porta de cada um de nós? Dizem que o desenvolvimento do país se deveu ao poder local. Pudera! Como se justificariam as pipas de dinheiro que para essas autarquias foram, anualmente, enviadas, quer dos fundos comunitários, quer do orçamento geral do Estado que é abastecido pelos nossos impostos e contribuições? Em 2006 pagámos o dobro da contribuição autárquica do ano anterior, tendo o mesmo património. E o selo automóvel? E o valor da água, a taxa do lixo, as licenças de caça, de pesca…tanta coima que não tem explicação…
António Barreto afirma que «esta chantagem autárquica acabaria se as câmaras tivessem de responder, não diante do governo e dos partidos, mas perante os bancos e os tribunais...Se a mesma «filosofia» fosse aplicada à organização de outros serviços como os da saúde, da segurança social, da habitação, talvez os autarcas perdessem a arrogância de que são permanentes e impunes exemplos. Se não se refugiassem em negócios de toda a espécie, se não se dedicassem às actuações estranhas das sociedades familiares e das empresas municipais e se fossem regularmente inspeccionadas pelas instituições adequadas (isentas, sérias, competentes) e que agissem com base em critérios justos, simultâneos e sem preconceitos hierárquicos, talvez a democracia fosse olhada com outro respeito, Talvez as finanças públicas despissem a tanga. E talvez os cidadãos respeitassem os autarcas com aquele toque cívico que até agora tem andado prostituído e às turras à cidadania. Para mal de nós todos que merecíamos um poder local, onde os autarcas voltassem à casa humilde que deixaram, no mesmo automóvel em que foram e com os depósitos bancários à vista de quem desejasse confrontá-los.
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