Senhor Camionista, deixe-me cumprimentá-lo, antes de mais. Ouvi-o atentamente na rádio, no programa da Eduarda Maio, e fiquei a pensar no que sentiria o senhor camionista se eu, que sou advogado, chegasse um dia à sua beira, digamos que lá pelas onze da manhã, numa qualquer estação de serviço por essa Europa fora, e, sem saber que tinha conduzido doze hora de enfiada, murmurasse entre dentes, enquanto o senhor camionista degustava a sua cerveja fresquinha, “bêbados parasitas, a beber a esta hora da manhã, em vez de estarem a trabalhar”?
Garanto-lhe que tentei tudo para telefonar para a Eduarda, e pedir-lhe para fazer a única coisa que ainda não se fez neste país, quando se debate as férias judiciais: pôr o povo a conversar com o objecto da sua crítica. Crítica, deixe-me desde já dizer-lhe, fácil, fluida.
Um dos seus colegas, minutos antes, também a viajar da Guarda para Castelo Branco, depois de ter saído de Salamanca logo pela manhã, disse uma coisa extraordinária sobre os magistrados: “Eles dizem que trabalham nas “férias”, mas eu não os vejo a trabalhar na praia!” E, a instâncias da Eduarda, de como é que distinguia um juiz na praia, respondeu ele: “Se tiver muitos papéis...”;
Ora, senhor camionista, eu sei que é difícil acreditar, mas o seu colega disse mesmo isto. O senhor disse algo de parecido (chamou aos advogados, aos funcionários e aos magistrados “parasitas”) e ainda falou dos tais dois meses de férias judiciais que todos querem gozar.
Permita que lhe diga, senhor camionista, mas ao senhor é difícil perdoar tanto desconhecimento, o senhor que ouve fóruns radiofónicos horas a fio, e já devia saber estas coisas. É por isso que lhe digo que, se me tivesse à sua frente enquanto bebia a sua cervejinha na estação de serviço, não dizia as coisas que disse, porque eu ia simplesmente perguntar-lhe:
- O senhor sabe o que está a dizer?
- Sei – diria o senhor camionista, e continuava – enquanto nós esperamos horas no Tribunal pelo julgamento, os funcionários andam sempre a passar, riem-se uns para os outros e tudo! Ouvem rádio a trabalhar e tudo. Não fazem nada!
- O senhor nunca se ri e ouve rádio, quando está a trabalhar, senhor camionista?
- Ora, rio, mas eles estão num sítio de respeito.
- Mas o senhor acha que respeito é isso, senhor camionista?
- Pode não ser, mas isto das férias é um escândalo! Dois meses?
- Diga-me uma coisa, senhor camionista, quando vê o apresentador do telejornal, acha que ele trabalha só uma hora por dia?
- (...)
- Pois é, senhor camionista...esses dois meses são de trabalho, não de férias...
- De trabalho? Que trabalho?
- Diga-me outra coisa, senhor camionista, nunca lhe aconteceu ter de atrasar um prazo de entrega?
- Já, muitas vezes.
- O que acha se lhe dissessem que, doravante, se não cumprisse o prazo, perdia o negócio, prejudicando assim dezenas, senão centenas de pessoas, que dependiam de si?
- Isso não pode ser, há sempre uma justificação.
- E se, mesmo com justificação, perdesse o negócio se se atrasasse uma hora a entregar uma mercadoria?- Impossível, não podia viver.
- Sabia que é assim que vivem os advogados? Sabia que durante mais de dez meses a fio não há perdão para um prazo falhado que seja? Conseguia viver assim?
- Eu não!
- Então o que me diz quanto a advogados que, dia após dia, estão preso em tribunais para diligências e julgamentos? Se o senhor passasse a vida a correr para tribunal, conseguia concentrar-se num trabalho maior, mais aprofundado, mais delicado?
- (...)
- E se fosse juiz, e tivesse todos os dias de estar na sala a fazer julgamentos, conseguia ter vagar para estudar e construir as suas sentenças, principalmente nos casos maiores?
- (...)
- Não é verdade que, sabendo que não ia ter de correr para tribunal (sendo advogado), ou de passar a vida em julgamento (sendo magistrado), conseguia despachar muito trabalho, e trabalho maior, na altura em que não houvesse julgamentos ou prazos a correr?
- Era...
- E sabe quantas leis são publicadas num ano?
- Centenas?
- Às vezes milhares de pequenas e grandes alterações! Sabe quando é que há tempo e vagar para aprofundar o estudo de todas essas alterações, para atender melhor os clientes (os advogados), ou conhecer melhor a lei (magistrados e advogados)?
- Nas “férias”?
- Pois, senhor camionista, agora talvez perceba que essas ditas “férias judiciais” são tudo menos férias. São a oportunidade de trabalhar, de fazer coisas absolutamente necessárias para que o trabalho (de juízes de advogados) seja mais produtivo e tenha mais qualidade.
- Ai é?
- E não só. A oportunidade de trabalhar com calma e vagar é de tal ordem, que muitos advogados e magistrados mal tiram férias (reais!) para descansar, gozando a maioria das vezes uma semana mal gozada, pouco mais, porque há muita coisa para fazer antes de recomeçarem a correr os prazos.
- Pois...
- Agora diga-me o que acontece a muitas sentenças, a muitos trabalhos de fundo, e a muitos estudos aprofundados, se lhe cortarem esse tempo pela metade...
- Não se faz nada disso...
- Pois não faz. Nem se pega em certas coisas – e o país fica prejudicado. E provavelmente os advogados e magistrados, agora, até vão gozar mais dias de descanso do que gozariam antes de lhes tirarem metade do tempo, porque vêem que não vão ter tempo útil para abordar certos assuntos. Quando voltarem, tudo vai ser feito com muito maior pressão, sem vagar e clarividência. Piores decisões de juízes geram mais recurso, piores peças de advogados geram maior contestação, mais papelada, mais tempo de processo.
- Chiça...
- E os prazos, a correr até Agosto, e a recomeçar logo no princípio de Setembro, não deixam que os advogados, principalmente os que trabalham sozinhos, tirem férias decentes, porque têm de deixar pronto muito trabalho cujo prazo vai terminar logo após as férias judiciais. Muitas vezes, porque a mulher (ou o marido) não têm flexibilidade na marcação de férias, no emprego deles, até deixam de passar as férias em família, porque só podem parar uma ou duas semanas em Agosto (e só em Agosto, agora!).
- E ficam “lixados”...
- Pois, um sistema que dá cabo de uma margem de produtividade razoável, como era a margem dada pelas anteriores “férias judiciais”, é um sistema que gera pessoas descontentes, desmotivadas, cansadas, pouco produtivas.
- Pois.
- E depois, senhor camionista, o senhor sai cá para fora, sendo advogado ou magistrado, trabalhando muitas vezes dia e noite (tal como os camionistas), e ainda ouve pessoas dizer o que o senhor e o seu amigo disseram, e dessa maneira.
- Até lhe apetece mandar-me a um lado, não é?
- É que o povo, senhor camionista, não tem razão só porque é pobre e ignorante! O povo, se quiser saber, é como os outros: informa-se! Não fala enraivecido só pelo que “apanhou”, ou lhe pareceu, no noticiário da véspera, senhor camionista.
- Tem razão!
- Então posso beber esta cerveja consigo, e ter a certeza de que o senhor percebe que ninguém quer mal ao senhor Ministro da Justiça, que lá porque ele é teimoso não quer dizer que tenha razão, e que os muitos milhares de advogados e magistrados que andam para aí a ralhar (eu diria, mais de 90%) fazem isso porque o sentem do fundo do coração?
- Pode, sim senhor!
- Percebeu porque é pior para si, para todos e para o país cortar uma coisa que se chama férias que não são férias nenhumas, mas apenas um tempo para trabalhar diferente e fundamental?
- Se percebo!
- Então venha de lá essa cerveja! É que eu nunca pensei que, porque o senhor trabalha sentado e a ouvir música, e bebe umas cervejas nas estações de serviço, é parasita e não faz nada. Não pense isso de nós, também, se fizer o favor, senhor camionista.
- OK!
- Já agora, como se chama, senhor camionista?
- Joaquim Silva, camionista, ao seu dispor!
- Idem deste lado, senhor Silva! Joaquim Silva, advogado, ao seu dispor.

(Nota: como eu gostava de me sentar com mais Joaquins e Marias Silva, camionistas, picheleiros, carpinteiros, pedreiros, empregados de balcão, professores, motoristas, médicos, lixeiros, banheiros, etc, etc, para lhes falar olhos nos olhos, e lhes dizer que muita da bacorada que se diz na tasca também os responsabiliza; porque o povo, muitas vezes, só ouve o que quer, e diz sempre o que lhe apetece, sem se importar com quem visa, sem se importar com o país que também é deles!)
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