I. Introdução.
A precipitação é inimiga da sabedoria. A precipitação é a arma da insegurança.
No dia de sexta-feira passada o país acordou com uma notícia de um jornalito que pouca dimensão tem e que por isso carece de manchetes escandalosas para que se recorde que o mesmo ainda existe.
Ali se afirmava em letras garrafais que os "órgãos de soberania" - incluindo o Presidente da República - tinham sido objecto de escutas telefónicas no âmbito do processo Casa Pia. E até se indicavam alguns desses órgãos de soberania, designadamente o Dr. Mário Soares - que se saiba, não exerce qualquer função como PR, na AR, no Governo ou nos Tribunais, apenas é membro do Conselho de Estado e este não é um órgão de soberania. Enfim, falta de leitura da Constituição.
II. O Ultimato
Pois bem, todos se levantaram em coro, quais os liberais da Revolução Francesa, a pedir a cabeça, no pelourinho, mas preferencialmente numa bandeja, do Sr. Procurador-Geral da República.
Num país onde a irresponsabilidade é o apanágio dos políticos, onde o princípio da separação dos poderes só interessa quando se quer impôr a submissão de um em relação aos outros, onde o princípio da presunção de inocência é elevado ao máximo dos valores quando determinadas pessoas "destacadas" são alvo de investigação criminal e onde até o Sr. Presidente da República propõe a inversão do ónus da prova (desde que atinja apenas os outros), eis que todos querem um bode expiatório sem culpa formada, apenas e tão só porque sentem que ninguém, absolutamente ninguém, está acima da lei e que eles, políticos, também podem ser objecto de investigação e quiçá, de condenação penal (o que seria algo completamente normal num estado de direito democrático).
Desde logo, o Presidente da República que esteve descansado no dia em que titulares de órgãos de soberania fizeram greve por consideraram estar em perigo o direito fundamental dos cidadãos à independência do poder judicial e ao princípio da separação de poderes, altura que nem uma palavra disse nesse momento, veio logo todo preocupado em comunicado oficial ao país, dizendo:
"Os direitos, liberdades e garantias dos portugueses são um pilar essencial da democracia, que tem de ser preservado, sem quebras, nem hesitações.Perante a notícia, hoje publicada no jornal 24 Horas, de graves violações à reserva da vida privada de dezenas de cidadãos, tornava-se imperioso averiguar da verdade da notícia e daí tirar as necessárias consequências legais e políticas. (...) Independentemente da responsabilidade disciplinar e criminal a que, concluídas as urgentes averiguações em curso, possa haver lugar pelos factos hoje noticiados, também delas tirarei, se for o caso, as adequadas consequências no exercício das minhas competências constitucionais".
Um ultimato, portanto.
Até o Professor Vital Moreira, insigne constitucionalista, máximo defensor dos princípios e direitos fundamentais consignados na Constituição (pelo menos parecia isso que resultava da sua Constituição Anotada que, pelos atropelos que têm vindo a ser feitos pelo próprio autor, já me fez colocá-la de parte, na estante da garagem), veio logo no órgão oficial do status-quo, digo, no seu blog pessoal, atirar à parede todos os citados princípios e sentenciar bem alto: "Se forem verdadeiras as escandalosas notícias sobre os registos pormenorizados das comunicações telefónicas de várias personalidades políticas alheias ao processo na investigação do processo Casa Pia, o destino do PGR só pode ser a demissão imediata. O que, aliás, surpreende é que seja preciso demiti-lo". Pois claro, num país democrático, digo, em Cuba ou nos antigos países de Leste, o procurador era logo cravado com balas e nem sequer seria preciso demiti-lo, disso nós já sabemos.

III. O Lapso
Afinal, depois de toda esta saga, veio a Portugal Telecom dizer... ter tudo sido um lapso. Não foram escutas, foram apenas as facturações detalhadas e porque a pessoa em causa tinha telefone de Estado (algo que uns certos titulares de órgãos de soberania não têm direito mas que continuam a ser rotulados de privilegiados...), a PT forneceu toda a facturação referente ... ao proprietário desse telefone (o Estado), onde se incluíam assim outros telefones.
Do comunicado da PT consta, designadamente o seguinte:
«2. As informações fornecidas dizem respeito a dados sobre facturação detalhada e não sobre escutas telefónicas. A facturação detalhada indica os números marcados, data, dia, valor, duração, hora e custo de chamada.
3. O caso a que se referem as notícias hoje divulgadas reporta-se a uma solicitação de Abril de 2003. As informações solicitadas respeitam os requisitos de confidencialidade na medida em que não identificam o nome dos clientes - não há cruzamento do nome do cliente com o número.
4. Na solicitação referida acima foi expressamente requerido pelo tribunal que a informação fosse entregue em ficheiro electrónico, o que configurou uma alteração aos procedimentos até aí adoptados - listagem impressa em papel.
5. Após averiguação preliminar entretanto já realizada, a PT apurou que a informação foi prestada relativamente aos números solicitados, tendo sido ocultada por um filtro informático os restantes dados referentes a outros números do mesmo cliente - cuja identidade é sempre desconhecida pelos serviços. O sistema informático gera a informação agregada por cliente e não por número da linha de rede. Esta informação foi entregue ao Tribunal de Instrução Criminal em Junho de 2003».

IV. A todo o custo
Os ânimos acalmaram. Afinal, nem foi requerido nem foi investigado nenhum número dos tais «órgãos de soberania». Nem sequer seria possível aos magistrados investigadores saber a quem pertenciam, salvo se estivessem a ligar para cada um dos números (como se sabe, os magistrados não têm mais nada para fazer). E, em bom rigor, até podem nunca ter chegado a tomar conhecimento deles porque estavam protegidos por um filtro informático. E não foram incorporados em qualquer processo.
Sem objecto do "crime", não há "crime".
E apesar do lapso ter sido da PT, alguns jornalistas há, ávidos de sangue, que continuam a "malhar" no MP. É que é sempre mais fácil malhar no MP que na PT (descubram-se as razões de tal discriminação).
E outros políticos continuam na senda da desgraça. Não fora o lapso da PT e tudo se conjugava para, se possível antes da tomada de posse do futuro PR, ser mudada a cadeira do PGR, a bom gosto do Governo, que já tratou de mudar todos os outros lugares chave da República para os seus boys e girls. Mas o lapso da PT cortou-lhes as voltas e têm que arranjar outro expediente, talvez outra notícia escandalosa que tenha sido encomendada ao mesmo ou a outro jornal, para os seus desideratos serem finalmente atingidos.

V. E se fosse o meu ?
Tudo isto aconteceu porque os números da facturação detalhada, os tais números de Estado que os políticos usam e abusam em fazer telefonemas, todos pagos pelas contribuições generosas dos cidadãos portugueses, estavam afectas a determinadas pessoas que logo se inquietaram.
Pergunta hoje Jerónimo Pimentel, no Diário de Notícias: «Concluindo, o que terá provocado a tempestade só pode ter sido o facto de se saber da existência de um envelope com o número 9. E que tudo o que não devia estar no processo da Casa Pia estava ali dentro escondido para uso de uns tantos magistrados. Porque, vendo bem, os políticos estão cansados de saber que houve escutas, atropelos, exageros, e têm vivido com isso. Só que agora apareceu na lista o telefone do... Presidente. E se tivesse sido o meu, também se indignavam?"
É por saber a resposta a essa pergunta que fico apreensivo pelo estado a que chegou este regime a que alguns chamam de democracia.
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