ARTIGO DE OPINIÃO DE
DR. ANTÓNIO FRANCISCO MARTINS, JUIZ DESEMBARGADOR
IN PORTAL VERBO JURÍDICO
“Todos os animais são iguais mas alguns são mais iguais do que outros”
George Orwell, O Triunfo dos Porcos
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Sobre esta questão das escutas telefónicas sejamos directos e frontais, para não perdermos tempo.Tal questão só tem tido a repercussão recente, de todos conhecida, porque aquelas escutas deixaram de se fazer apenas a cidadãos anónimos e comuns e passaram a ser feitas, também, a deputados, ministros e dirigentes partidários.
Para que não restem dúvidas desta afirmação, façamos uma breve análise da história das escutas telefónicas e compreenderemos o quê e o porquê das mais recentes propostas sobre a matéria.
Como é de todos sabido, enquanto tais escutas foram apenas feitas a cidadãos anónimos e comuns, o poder politico nunca se preocupou com aspectos relevantes e essenciais para que as escutas telefónicas, em processo penal, fossem apenas e tão só aquilo que devem ser: um meio de obtenção de prova em crimes que, pela sua natureza, se justifica a utilização desse meio de investigação.
Daí que o legislador tenha considerado irrelevantes os juízes de instrução criminal e, por isso, na orgânica judiciária (Lei 3/99 de 13.01), os tenha apenas previsto para Lisboa, Porto e Coimbra. Nas restantes comarcas deixou essas funções aos juízes de comarca ou aos juízes criminais, para serem feitas em regime de acumulação com o seu outro serviço, em bom rigor tipo hobbie, ao final da tarde, durante a noite ou a madrugada, quiçá ao fim de semana.
Mas também assim se compreende que o poder politico nunca se tenha preocupado em dotar os tribunais e os juízes dos meios necessários ao controle, eficaz, das escutas telefónicas, o que foi mais evidente quando estas passaram a ser gravadas não nas vetustas cassetes mas em CD Rom e nos tribunais não existiam computadores com software necessário para ouvir aqueles suportes magnéticos.
Ainda a nível legislativo recordo que o adjectivo “imediatamente”, utilizado no art. 188º do Código de Processo Penal, para definir o momento em que o auto e as fitas gravadas devem ser levadas ao juiz de instrução, já levou a que se escrevessem centenas de páginas sobre o assunto, à anulação de alguns julgamentos e nunca o legislador se preocupou em intervir para dar outros indicadores na concretização desse conceito em branco.
Muitos outros exemplos se poderiam dar para comprovar a forma como, olímpicamente, a questão das escutas telefónicas só passou a ser problema a partir do momento em que os escutados passaram a ser, também, deputados, ministros e dirigentes partidários.
Aí tocaram os sinos a rebate e o poder politico dispôs-se a “resolver o problema”, que até aí nunca tinha considerado existir.
As propostas iniciais foram atabalhoadas.Recordo-me da proposta de um Sr. Deputado que pretendia que as escutas telefónicas fossem apenas para o “crime sujo”, terrorismo, tráfico de droga e crimes de sangue (homicídios). Como é evidente, era uma forma de deixar de fora da possibilidade de escuta os autores do chamado “crime limpo” ou de “colarinho branco”.
Mas convenhamos que é difícil de justificar que as escutas telefónicas não possam ser feitas em relação a crimes como a corrupção, a prevaricação, o tráfico de influências e o branqueamento de capitais. Daí que sendo “gato escondido com rabo de fora”, havia que encontrar melhor solução.
Por isso a proposta seguinte passou, por ideia do Sr. Ministro da Justiça, a ser a criação de uma “Comissão de acompanhamento das escutas”.
Para lhe dar a auréola de legitimidade pretendia-se que funcionasse junto do Conselho Superior da Magistratura e até seria integrada por um juiz (embora os outros dois membros fossem representantes do poder politico). Mas como as criticas foram demolidoras, no sentido de que isso seria um atentado à independência do poder judicial, refez-se o acompanhamento e, afinal, a dita “Comissão” já é só para aspectos técnicos e estatísticos, não tendo nada a ver com os processos concretos.
Mas há que reconhecer que a mais recente proposta é digna de um verdadeiro (embora mau) discípulo de Maquiavel.
Consiste ela em que os Srs. Deputados e Ministros tenham foro especial, os tribunais da relação, e consequentemente para os actos de investigação aos mesmos, incluindo pois as escutas telefónicas, terão de ser os juízes daqueles tribunais a autorizá-las e não já os juízes de instrução criminal.
Dir-me-ão que isso não tem nada de especial. E disse-o, a acreditar no relatado nos jornais, o Sr. Coordenador da Unidade de Missão da Reforma Penal: “Não me parece que os juízes dos tribunais da Relação sejam mais benevolentes com os políticos”.
Curioso, ou talvez não, é este comentário ter originado sorrisos no público – procuradores, juízes, advogados e jornalistas – que assistia à tertúlia onde aquela afirmação terá sido feita.Não terá concerteza passado despercebido a grande parte daquele público que aquela proposta, conjugada com a outra que “anda no ar” (ou melhor, debaixo da mesa) de alteração das regras de acesso aos tribunais superiores, no sentido de o recrutamento dos juízes destes tribunais passar a ser feito por concurso curricular entre juristas de mérito, e não como agora, com base numa progressão da carreira dos juízes dos tribunais de 1ª instância, é a cereja em cima do bolo.
Através do concurso curricular entre juristas de mérito há-de o poder politico encontrar forma de controlar as nomeações dos juízes para os tribunais superiores (incluindo claro os tribunais da relação) e, depois, hão-de ser estes “juízes”, assim seleccionados, que serão os competentes para decidir da não realização (não foi engano, é mesmo da “não realização”) de escutas a Deputados e Ministros.
Não tenho dúvidas que esta proposta tem um grande mérito.
Dar inteira razão ao porquê da substituição dos sete mandamentos inicialmente inscritos na Animal Farm, pelo único mandamento que aí passou a figurar, citado no início deste texto.
Sejamos directos e frontais, como acima anunciamos.
No fundo, o que o poder politica pretende com as propostas relativamente à matéria das escutas telefónicas a Deputados e Ministros é simples: aqui, como ali, que certos animais sejam mais iguais do que os outros.
António Francisco Martins
Juiz Auxiliar no Tribunal da Relação de Coimbra
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