1. A reforma judiciária como necessidade de actualização do direito praticado

A necessidade de reformar o sistema judiciário impõe-se como meio de actualização e adaptação da prática do direito à vida em sociedade. O direito que é, apenas, uma das dimensões da vida, será coisa morta se não for capaz de acompanhar o evoluir da vida social.

A segurança e o bem-estar sociais exigem que a Justiça não dê respostas mortas a questões vivas. Uma Justiça lenta e desadaptada da realidade onde é chamada a actuar é uma Justiça sem resposta. E quando a Justiça não dá respostas, "outros" as darão por ela.

Daí que o direito legislado e o direito praticado, numa sociedade em constante mutação, tenha que acompanhar as evoluções ou mesmo as revoluções da vida. Agora, não basta legislar e com isso pretender que se solucionam todos os problemas sociais.

Aprendemos nos bancos da faculdade que o direito não se confunde com a lei. Esta é, apenas, uma das suas fontes (das suas componentes) sendo que a doutrina e a jurisprudência a completam e a induzem. Se a doutrina explica e define os grandes valores e princípios jurídicos a jurisprudência estabelece as pontes entre o direito e a vida.

Toda a reforma judiciária deve ter por escopo a optimização da aplicabilidade do direito no nosso tempo. Tal implica, por um lado, que a decisão judicial se forme sem processos burocráticos ou interferências ilegítimas das partes (ou de outros agentes sociais) tendentes à sua manipulação e, por outro, que a partir dessa decisão se efective realmente o direito em prazo razoável.

 

2. A reforma judiciária e a crise do sistema

Numa sociedade complexa, enervada de direitos, as reformas não podem passar por restrições ao papel do sistema judiciário sob pena de se modificar negativamente as condições de um correcto exercício da democracia.

O sistema judiciário é o lugar expressivo da pluralidade de posições que na sociedade se manifestam. A função da magistratura, diversa da dos agentes políticos, consiste na efectivação plena de direitos reconhecidos, na concessão de legitimidade e, portanto, de tutela, a interesses novos no quadro dos valores fundamentais já definidos, mesmo que, por sua vez, eles se encontrem num processo contínuo de redefinição e de adequação às dinâmicas sociais.

O sistema judiciário nas suas diversas articulações, decorrentes do poder da maioria e dos interesses das minorias, torna plenamente manifesta a sua natureza de instituição que deve assegurar a legalidade.

Quando a actuação da Justiça se move no terreno dos valores fundamentais do ordenamento jurídico, pode dar origem a conflitos com decisões políticas e mesmo legislativas.

A crise atinge o seu ponto de ruptura quando a incompatibilidade se manifesta entre valores essenciais e interesses políticos. E a crise cresce paralelamente à pretensão dos governos de não encontrarem nenhum obstáculo às políticas por si deliberadas, sobretudo quando estas se apresentam, ou se presumem, assistidas de uma forte base de sustentação social.

O grande problema da actual crise institucional portuguesa não reside no facto do sistema judicial não poder dar respostas atempadas aos conflitos de interesses públicos e privados (porque se assim fosse há muito que estaria solucionada), mas decorre do facto do sistema judicial não dar as respostas que o poder político quer. No dia em que o poder político (e com ele todos os micro poderes que o sustém) consiga, como pretende, controlar toda a actividade judicial, pouco importará a intempestividade das decisões, contanto que elas sejam alheias aos interesses públicos ou privados de determinados agentes ou grupos sociais.

Num mundo globalizado de economia neo-liberal, num mundo onde os custos da política cresceram, num mundo onde os interesses entre a política e os negócios se tornaram cada vez mais estreitos, o bloqueio do sistema judiciário pode ser pernicioso, mas o seu desbloqueio, sem o correspondente controlo político, criará de certo mais problemas, pela existência de notáveis resistências à actuação da lógica liberalista e ao prosseguimento de economias paralelas instaladas.

Tal acontecerá, não por uma qualquer hostilidade de tipo ideológico, mas porque a tutela dos direitos, interesses e situações legítimas dos cidadãos não são reconduzíveis à lógica economicista (ou de mercado) e a defesa da legalidade não se compadece com actuações económicas paralelas ou à margem dos valores contidos nos direitos fundamentais.

Se podemos definir as sociedades europeias como sociedades de direitos torna-se inevitável que à volta da instituição judiciária se adensem turbulências políticas uma vez que tal definição arrasta irresistivelmente consigo uma gestão judiciária dos direitos dos cidadãos. E os grandes obstáculos apresentam-se à magistratura quando há que lhes dar efectividade.

Bem pobres e tendenciosas são as posições daqueles que, em Portugal, em tons de escândalo ou de denúncia, apontam à magistratura a responsabilidade dos males do sistema e a obstrução da sua reforma por interesses corporativos. Como se a luta duma significativa maioria de juízes não estivesse fortemente ligada à optimização de uma reforma do sistema judiciário e à defesa de espaços mais ou menos largos de independência, tendo em vista a melhoria da administração da justiça face aos cidadãos.
 
3. A independência real dos poder judicial

A independência real dos juízes é um dos mais antigos valores sócio-políticos. A consciência deste princípio era tão premente, que no período medieval, em Portugal, como em Itália, se sentiu a necessidade de criar "juízes de fora" estranhos ao concelho, isolados dos interesses dos seus habitantes.

A longa história do poder judical concentra-se em torno de tentativas mais ou menos eficazes, mais ou menos conseguidas, de criar um corpo judicial independente a par de outras de sinal contrário, ou seja, da criação de uma judicatura como um "poder neutro".

Se a ideia de poder judicial neutro contém, em si, a potencialidade de existência de uma magistratura (judicial) subtraída a qualquer influência, a pressuposição da presença de juízes que julguem "sem temor nem tremor", o certo é que tal ideia tem servido, sobretudo, para excluir a magistratura dos conflitos políticos, económicos e socialmente mais relevantes, dando ao governo a possibilidade de agir sem interferências incómodas da jurisdição.

A independência concebida pelo poder político para os juízes, como liberdade do acto decisório, é enganosa. Na verdade, encontrando-se viciados os mecanismos "ex ante" e "post" decisórios e, funcionalmente, neutralizados os juízes, a sua independência (mesmo ao nível da decisão) não passa de uma simulação.

E a grande questão que continua a preocupar o poder político não é a da reforma do sistema judiciário no sentido de o tornar operativo no quadro dos valores inalienáveis da jurisdição (porque pilares do Estado de direito), mas a subversão total desses mesmos valores convertendo-se a magistratura não, apenas, na "bouche qui prononce la loi" mas na "boca que diz a lei como se espera e se quer". Quem tal defende não importa que o Estado de direito não passe mais do que uma formulação teórico-constitucional desde que a consagração da asserção produza efeito feérico na a União Europeia ou no Conselho da Europa.

Montesquieu sabia que "la puissance de juger si terrible parmi les hommes", era condição indispensável de liberdade. Mas sabia também que os juízes, para exercerem esta função essencial, necessitavam dum desenvolvimento harmónico dos três poderes (legislativo, executivo e judicial). Só que a harmonia dos três poderes, condição da própria democracia, deve ser encarada como um complexo jogo de pesos e contrapesos

Reduzir a independência do sistema judiciário a uma expressão funcional mínima, penalizado que está por um aumento assimétrico dos diversos poderes é fazê-lo perder a capacidade de garantir os direitos dos cidadãos contra as prevaricações do governo, da administração ou de quaisquer entes privados.

De facto, numa sociedade de direitos, a tutela plena da legalidade exige que o sistema judicial seja bem forte de forma a exercer um controlo efectivo sobre o comportamento de todos os detentores de poderes, públicos e privados, formais e informais, manifestos ou ocultos.

 

4. A eficácia da magistratura

A definição e a aplicação do direito, numa sociedade onde os valores hibernaram exigem uma magistratura judicial eficaz. Porém, tal eficácia deve existir por referência a uma independência "armada" dos meios necessários e adequados ao completo exercício da sua função.

Se, por um lado, é essencial a ruptura com dependências formais do executivo, é, por outro, essencial a disponibilidade dos meios necessários e adequados ao desenvolvimento da sua acção.

Que interessa a existência de Tribunais dotados de inúmeros poderes formais se continuam estrangulados por dificuldades materiais, processuais e financeiras de toda a ordem?

Uma magistratura sem meios adequados (sobretudo legislativos e financeiros), projectada em todas as direcções, transformada em "vazadouro" dos conflitos sociais, sobre a qual se descarrega uma micro conflitualidade enorme, devastante, opressiva que lhe tolhe o tempo e a capacidade de se ocupar com os verdadeiros e próprios litígios, não pode exercer uma judicatura eficaz.

E perante todo este panorama vêm os "iluminados" deste país falar da gestão e da eficiência dos Tribunais como se de qualquer empresa ou fábrica se tratasse e que não se quisesse deixar cair em insolvência. A diferença entre a economia e a Justiça é que a primeira tem por escopo o lucro (independentemente do bem-estar social) e a segunda a dignidade do Homem. E esta não se determina por fórmulas matemáticas e muito menos segundo as leis do mercado.

Os Tribunais não têm que ser eficientes (como por aí se apregoa), (e qualquer comissão formada para esse fim constitui, à partida, salvo o devido respeito, uma aberração conceptual). O que os Tribunais têm é que estar dotados de todos os meios que lhes permitam efectivar o direito em prazo razoável. É este o conteúdo significante do art.6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e esta tem sido a Jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.

 

5. Os comportamentos político-governamentais em matéria de Justiça

Dos dois últimos governos deste país (com uma política incompreensivelmente, ou não, concertada) nenhum esteve, nem está, minimamente preocupado com a dignificação e a eficácia da Justiça enquanto valor e pilar do Estado de direito. Porque se o estivesse não tinha o governo enveredado por discursos e pela prática de actos inúteis às reformas exigíveis, meramente deslegitimadores do poder judicial e dos seus titulares.

A deslegitimação, tal como a calúnia, é a melhor forma de deposição, sem convulsões sociais, de qualquer poder ou dos seus titulares

Deslegitima-se o poder judicial, criando-lhe dificuldades a vários níveis, dificultando-lhe o acesso a meios, retirando-se-lhe poderes de facto, contornando-se-lhe as decisões ou colocando obstáculos à sua execução.

Calunia-se a magistratura acusando-a de "preguiçosa, negligente, incompetente, prepotente, responsável pela ineficácia do sistema".

Desde há alguns anos que um minucioso trabalho de ourivesaria vem sendo feito na área da deslegitimação do poder judicial, por fautores de opinião cuja missão outra não foi senão pôr em cheque, de forma contínua, o sistema judiciário do país, sem qualquer outra base que não fosse a especulação casuística. Esta situação atinge o auge quando o poder político se torna, o corifeu desses fautores da opinião publicada, vindo ele próprio a terreiro brandir o discurso subversor do sistema...

É um trabalho digno do autor do "Príncipe" que de tanto não se teria lembrado.

Na verdade, não se fazendo tábua rasa de erros e negligências que a uns tantos juízes possam ser assacados, nem enjeitando a quota-parte de responsabilidade que a magistratura tenha na gestão do sistema, é no mínimo estranho que "a una voce sine discrepante", num círculo bem identificado, comentadores e analistas, com ou sem preparação jurídica, em quase exclusividade de cobertura pela comunicação social, tenham vindo a desenvolver um ataque programado, contínuo, devastador, desprestigiante da magistratura judicial (bem como da do MºPº cuja deslegitimação se tem centrado, sobretudo, no Procurador-Geral - e mais raramente nos demais magistrados).

Não sendo os juízes portugueses nem menos competentes, nem menos dedicados à função que os seus congéneres europeus e não sofrendo o nosso sistema judicial de disfunções que não sejam as sentidas em outros países da Europa, a razão de toda esta invectiva é só uma: preparar a opinião pública para a subversão do sistema judiciário, apresentando-a com a roupagem de reforma modernizadora e eficiente contra comportamentos corporativistas e práticas ligadas a privilégios de classe.

 

6. A subversão do sistema

Um país cultural e economicamente à beira do apocalipse possui as condições adequadas à apropriação do poder público por grupos de interesses privados que interagem ao nível dos diversos órgãos de soberania. Para que o controlo do Poder se exerça plenamente, torna-se necessária a apropriação do poder judicial.

Os meios de a obter são vários.

Enumeram-se alguns sem pretensão de se ser exaustivo:

a) Recrutamento, selecção, formação e nomeação de magistrados segundo parâmetros "weberianos", sem qualquer específica cultura da jurisdição e da independência

b) Ausência de carreira.

c) Politização dos Tribunais superiores.

d) Controlo da independência externa e interna.

e) Controlo dos mecanismos processuais penais de investigação e de julgamento.

f) Dejudiciarização do direito civil, comercial, económico.

g) Controlo da jurisdição administrativa através da manutenção (sem qualquer base filosófica) de uma ordem de Tribunais paralelos aos da ordem judicial.

h) Responsabilização dos juízes como forma intimidatória de controlo das suas decisões

i) Controlo do pluralismo interpretativo, através de um apertado sistema de fiscalização concreta da constitucionalidade e da destruição dos demais mecanismos de segurança jurisprudencial necessários à existência desse mesmo pluralismo.
 
7. A independência e a carreira judicial

Cada uma das alíneas enumeradas merecerá desenvolvimentos que faremos em exposições posteriores. Por ora, ater-nos-emos a especificar alguns dos itens descritos por melhor reflectirem intenções explícitas ou implícitas do poder político.

Nestes tempos, que nos parecem ser os últimos, tem-se vindo a falar com insistência em carreira plana. Só que, o que temos vindo a apreender do discurso explícito ou encapotado de algumas forças políticas, a dita "carreira plana" nada tem de plano e muito menos de carreira.

O único país europeu com uma carreira tendencialmente plana é a Itália (de cuja concepção de magistratura os políticos fogem como o diabo da cruz, sabe-se lá porquê?).

Na Itália a carreira plana permite a um magistrado de 1ª instância atingir, de acordo com a sua antiguidade, o título e o vencimento de "Consigliere dell'Appello" e permanecer na 1ª instância se assim o desejar ou não tiver ainda vaga numa "Corte d'Appello" e, da mesma forma, permite a um magistrado "dell'Appello" atingir o vencimento e o grau de "Consigliere della Cassazione" e ficar, por idênticas razões, na 2ª instância. Uma vez integrado na 2ª instância ou no Tribunal de Cassação não pode retroceder. A obtenção do título com a permanência no primitivo lugar de origem dá-se por opção do magistrado ou por inexistência de vaga.

Isto, nada tem a ver com a carreira plana preconizada à portuguesa.

O que o poder político pretende é abolir a carreira, reduzindo os juízes a funcionários da 1ª instância e preencher os quadros dos Tribunais superiores com gente da sua total confiança que se encarregará de revogar ou anular as decisões "inadequadas", produzindo-se jurisprudência a contento ou, pelo menos, sem sobressaltos político-sociais. Num contexto destes, não é de admirar que se advogue a ideia de que os políticos devam ser julgados só nos Tribunais superiores.

Podemos discutir o modo de recrutamento, selecção e formação dos magistrados, o que não se pode é cercear a carreira daqueles que foram sedimentando uma cultura da jurisdição, substituindo-os, nos Tribunais superiores, por agentes do poder político com funções judicantes. A criação de uma judicatura especial para os Tribunais superiores atenta contra a independência do poder judicial e subverte o Estado de direito.

Um outro conjunto de reformas tem a ver directamente com o princípio da independência.

Na verdade a independência pressupõe o exercício da jurisdição por sujeitos independentes entre si (independência interna) e a existência de um órgão de auto-governo da magistratura (independência externa). Tem como corolários, a vitaliciedade, a inamovibilidade e a irresponsabilidade das decisões.

Também neste campo tem o poder político equacionado a hipótese de subversão total dos valores há muito consagrados em órgãos supra nacionais como as Nações Unidas ou o Conselho da Europa.

A criação de Presidentes de Tribunais, a pretexto de pseudo eficiências de gestão, como autênticos chefes de jurisdição, constitui um meio de controlo interno da magistratura e uma quebra da independência. A gravidade da situação aumenta quando, conjuntamente com esta inversão de valores, se preconiza a aplicação de uma nova invenção condicionadora da independência: a "deslocalização" de juízes que mais não é que a supressão eufemística do princípio da inamovibilidade

É interessante verificar que a modernização do sistema judiciário, no Portugal do século XXI, implica o renascimento de medidas do século XIX, já que idêntica ideia teve a Raínha Dona Maria II ao suprimir a inamovibilidade dos Juízes.

A substituição do Conselho Superior da Magistratura (CSM), cuja composição não obedece ao preconizado a nível do Conselho da Europa, por um conselho único, é mais um atentado ao auto-governo da magistratura e à sua independência externa, em perfeita consonância com o pensamento do Ministro da Justiça italiano ao tempo de Mussolini que afirmava que o auto-governo da magistratura era incompatível com o Estado fascista.

A eliminação da carreira judicial, a criação de dependências no interior da magistratura judicial, a transformação do CSM quanto à sua estrutura e composição, a responsabilização civil directa ou indirecta dos juízes, fora dos casos de dolo, a supressão da inamovibilidade, garantirão, só por si, ao poder político e a todos os demais poderes a total dependência da magistratura. O mais virá por acréscimo.

Portugal poderá, então, vir a orgulhar-se de ter criado um sistema judiciário sem paralelo na Europa , nem mesmo na Albânia.

Lisboa, 1 de Março de 2006
Orlando Afonso
Juiz Desembargador
Membro do CCJE do Conselho da Europa.
In ASJP
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