POR DR. WILLIAM THEMUDO GILMAN

Juiz de Círculo - Viana do Castelo, 06/03/2006
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Primeiro ouvi, depois vi, a seguir li, e no fim não compreendi.
Vinha eu hoje a regressar a casa depois de um dia de trabalho, quando ouvi na rádio uma notícia que estranhei.
E estranhei, não tanto pela área (da Justiça), ou sequer pelo assunto (das penas), ou ainda pelo actor social (O Presidente da República).
Com efeito, nos dias de hoje, a área de Justiça não sai dos noticiários, quase fazendo concorrência ao futebol; dentro daquela área a questão das penas em geral e da prisão em especial é dos assuntos preferidos; e sua Exa. o Sr. Presidente da República tem-se pronunciado bastas vezes sobre uma e outros.
O que estranhei foi o conteúdo da mensagem veiculada na notícia.
Segundo esta “O Presidente da República, Sr. Dr. Jorge Sampaio, no final de uma visita ao Estabelecimento Prisional de Lisboa (EPL) convidou os políticos a «olharem para os processos» judiciais e a repensarem a forma como é calculado o somatório das penas a que é condenado um arguido. Terá dito o Sr. Presidente da República que se atrevia «… a convidar os dirigentes políticos a olharem para os processos e para o que significa fazer cúmulos jurídicos, às vezes três pequenos delitos dão oito anos (de pena de prisão), com a maior simplicidade, em Portugal».
Como o que ouvi não me pareceu fazer sentido, nem jurídica nem realmente, mal cheguei a casa liguei a TV e fiquei à espera de um noticiário.
Aí, já não sei em que canal foi, acabei por confirmar que aquilo que tinha ouvido na rádio aparecia agora, mais palavra, menos palavra, pela voz do Sr. Dr. Jorge Sampaio.
Bem, aí comecei a ficar preocupado.
Estaria a ouvir e ver bem ?
Fui à cozinha, bebi um copo de água, acalmei um pouco e dirigi-me para o meu computador. Liguei a Net e fui ver as notícias. Lá estava, preto no branco. Confirmava-se agora por escrito, aquilo que primeiro tinha ouvido e depois visto.
Confesso que fiquei completamente baralhado.
Pus-me – entristecido pelo que tinha visto, ouvido, lido e estranhado – a pensar.
Virei-me para o meu fiel amigo, um Serra da Estrela de nome Man que me acompanha desde a minha passagem pela nobre Comarca de Trancoso, e que neste momento mostrava alguma inquietude pelo meu irrequieto estado de alma, e questionei:
«Mas então em Portugal, nos cúmulos jurídicos, às vezes três pequenos delitos dão oito anos (de pena de prisão), com a maior simplicidade ?»
Já lá vai mais de uma década como Juiz, já intervim – a presidir ou como adjunto – em mais de um milhar de julgamentos criminais; já proferi despachos nuns bons milhares de processos criminais e nunca, mas mesmo nunca, vi três pequenos delitos darem, em cúmulo jurídico, oito anos de prisão.
A não ser que o termo pequeno delito seja utilizado com uma vagueza tal, que abranja realidades que de pequenas só o nome teriam. Presumo que não.
Ora, qualquer jurista, com um mínimo de prática do foro, sabe ou presume-se que saiba que, juridicamente, três pequenos delitos nunca poderão dar em cúmulo jurídico 8 anos de prisão. Trata-se, diria eu, de uma impossibilidade jurídica.
Com efeito, nos termos do artigo 77º, n.º 2 do Código Penal em caso de cúmulo jurídico:
«A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.»
Imaginemos a seguinte situação.
Um arguido é condenado pelo cometimento de, por exemplo, três crimes de furto simples do artigo 203º do Código Penal (punível com pena de prisão de um mês até 3 anos ou multa). E é condenado, suponha-se, nas penas parcelares (que até serão exageradas face ao que se vê usualmente na prática) de 1 ano, 1 ano e 6 meses, e 2 anos de prisão. Ao fazer-se o cúmulo jurídico, e seguindo-se a regra do artigo 77º, temos que a pena aplicável no cúmulo vai de 2 anos de prisão até 4 anos e 6 meses de prisão. Ou seja, neste caso é impossível juridicamente ir além de 4 anos e 6 meses de prisão. Aliás, em termos práticos numa situação destas e segundo o que a experiência me vem dizendo, a pena raramente se situará acima dos 3 anos, 3 anos e 6 meses de prisão.
Simples, não é?
Tudo visto, se é certo que temos pessoas a mais nas nossas prisões, o problema não estará nas regras dos cúmulos jurídicos ou sequer no modo como estes são feitos. O problema está nas molduras penais elevadíssimas que estão previstas na nossa lei penal.
Baixem-se as molduras penais e baixarão as penas parcelares aplicadas. Reduzidas as penas concretas parcelares, reduzidas ficarão as penas dos cúmulos jurídicos e poderá então pensar em acabar-se com o excesso de população prisional existente neste nosso país.
A questão é que para tomar estas medidas é preciso ter coragem: muita coragem !
Bem, por aqui me fico: ouvi, vi, li, e no fim não compreendi.
Vou pegar na trela e levar o Man à rua, pois que neste país nada já parece valer a pena.
É um país sem alma.


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