Se a atribuição de um prémio ou de uma comenda é uma questão de "elementar justiça" e de "público reconhecimento" das qualidades do agraciado, não pode esta elementar justiça deixar de abranger o mundo das Leis.
Isto de atribuir prémios é uma tarefa espinhosa, não tanto pelos que se atribuem, mas mais pelos que, incompreensivelmente, ficam por atribuir. Consciente que estas dificuldades não poderiam justificar uma demissão do dever de, reconhecendo o mérito onde ele existe, dar a cada um o que lhe é devido, inicio aqui a minha cerimónia anual de atribuição dos prémios-da-justiça-sem-nome-para-não-violar-direitos-de-autor.
E o prémio da categoria "Norma mais discreta do sistema jurídico" vai para... a(s) norma(s) contida(s) no art. 131.º, n.º 3, als. a) a c), do Código das Custas Judiciais:
«3 - Das receitas mencionadas na alínea c) do n.º 1 [as taxas de justiça cível], revertem:
a) 21%o
[permilagem] para o conselho geral da Ordem dos Advogados;
b) 3%o para o conselho geral da Câmara dos Solicitadores;
c) 56%o para a Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores
»
Biografia
A actual redacção do art. 131.º, n.º 3, als. a) a c), do Código das Custas Judiciais nasceu por alturas do Natal de 2003 - Decreto-lei n.º 324/2003, de 27 de Dezembro. É ela a expressão legal da afamada máxima de Lavoisier "(na natureza) nada se cria, nada se perde, tudo se transforma".
Antes da entrada em vigor deste Decreto-lei n.º 324/2003, o Código das Custas Judiciais dispunha, no seu art. 42.º, que uma percentagem da procuradoria paga pela parte vencida revertia para conselho geral da Ordem dos Advogados, para o conselho geral da Câmara dos Solicitadores e para a Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores.
Este imposto de justiça - não se destinava a pagar qualquer serviço do tribunal ou dos advogados das partes, pelo que não era uma taxa - foi abolido pelo referido diploma e, em seu lugar, surgiu a nossa premiada.
Os valores em causa - 8% da taxa de justiça cível - representam cerca de 15 milhões de euros por ano, informou o Senhor Ministro da Justiça, no programa Prós & Contras. Embora o Senhor Ministro da Justiça se estivesse a referir aos 8% que, incidindo sobre a mesma receita, revertem, até 1 de Julho de 2006, para os Serviços Sociais do Ministério da Justiça, julgo não ser abusivo considerar que o valor destes 8% é igual ao daqueles 8%...
(Consultados os nossos jurados, posso assegurar que o facto de esta afectação da taxa de justiça às pensões de reforma de profissionais liberais poder convertê-la, nesta parte, num imposto (!), não constitui qualquer causa de "indignidade" da candidata agora premiada).
Exposição de motivos
É evidente a razão pela qual foi escolhida esta norma, entre tantas candidatas.
Motivado por um louvável esforço de contenção orçamental, o legislador entendeu, e bem, que não há qualquer razão para que o Estado "subvencione" através de prestações sociais de qualquer tipo apenas (discriminação positiva) uma concreta classe de profissionais.
Tributária deste entendimento, a Lei n.º 60-A/2005, de 30 de Dezembro, veio determinar (art. 94.º) que, a partir de 1 de Julho de 2006, os 8% que, até então, estavam afectos como receita aos Serviços Sociais do Ministério da Justiça - e, por esta via, ao subsistema de saúde do Ministério da Justiça - deixarão de o estar. (Note-se que esta norma não tem a ver com a questão da delimitação subjectiva do subsistema de saúde do Ministério da Justiça).
Ora, neste esforço orçamental foi esquecida a "subvenção social" a favor de profissionais liberais contida na norma agora premiada. A nossa galardoada passou elegantemente despercebida.
Não se pense que o lapso do legislador é indesculpável e que esta norma não poderia passar despercebida. É que ela é, efectivamente, discreta.
Já em 2005, quando foram noticiadas algumas "acumulações" de cargos públicos com pensões de reforma, tendo um jornal, de um modo demagógico e populista, noticiado que o Senhor Presidente da República também acumulava uma pensão de reforma - pelo exercício da advocacia - , o Chefe da Casa Civil emitiu, em 11 de Junho, uma Nota à comunicação social, onde se pode ler, além do mais:
«1. O Dr. Jorge Sampaio recebe, desde 1 de Janeiro de 2003, uma pensão de reforma da Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores.
(...)
3. Assim, a reforma actualmente recebida pelo Dr. Jorge Sampaio foi totalmente constituída a expensas suas, segundo o regime legal de auto-contribuição em fundo fechado, sem qualquer financiamento nem do Orçamento Geral do Estado, nem do Orçamento da Segurança Social».
(Para total compreensão da Nota, e para que não surjam equívocos desnecessários, deve ela ser integralmente lida)
Ressalvada a hipótese de, dentro da Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores, a reforma em causa provir de um fundo autónomo efectivamente fechado - em relação ao restante fundo desta Caixa - , afigura-se que a discrição da nossa premiada também aqui fez das suas, tendo passado despercebida ao Senhor Chefe da Casa Civil da Presidência da República.
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