Entrevista publicada no Jornal Expresso, a 23 de Dezembro de 2005
O Bastonário dos Advogados diz que o Governo tem feito um esforço para cumprir os pagamentos de honorários aos advogados nomeados de forma oficiosa: «O Estado nunca pagou tanto a advogados como durante 2005». Em entrevista, quando cumpre o primeiro dos três anos de mandato, Rogério Alves rebate as críticas de quem diz que a Ordem tem andado muito apagada e que perdeu a liderança na luta pela reforma da Justiça e afirma que prefere a «eficiência» ao «espalhafato».
O Bastonário dos Advogados diz que o Governo tem feito um esforço para cumprir os pagamentos de honorários aos advogados nomeados de forma oficiosa: «O Estado nunca pagou tanto a advogados como durante 2005». Em entrevista, quando cumpre o primeiro dos três anos de mandato, Rogério Alves rebate as críticas de quem diz que a Ordem tem andado muito apagada e que perdeu a liderança na luta pela reforma da Justiça e afirma que prefere a «eficiência» ao «espalhafato».
EXPRESSO — Como responde à crítica de que a Ordem deixou de liderar a luta pela reforma da Justiça, como fazia o seu antecessor, José Miguel Júdice?
R.A. — Respeito essa crítica — que eu apenas vi feita pelo Dr. José Miguel Júdice —, mas não aceito e acho-a profundamente errada. A Ordem tem tido um papel determinante, interveniente e pedagógico, sabendo movimentar-se com grande capacidade no tumulto em que se tornou o debate sobre a Justiça. Temos lançado para a discussão pistas essenciais na definição do futuro da Justiça. Fá-lo-á, porventura, sem aquele espalhafato que às vezes acompanha determinadas tomadas de posição, mas fá-lo com eficiência.
EXP. — E o que tem conseguido?
R.A. — Acabou, por exemplo, o mega-sofisma sobre as verbas transferidas para a Caixa de Previdência dos Advogados e dos Solicitadores. Num certo momento, criou-se uma onda de contestação a esses valores, que foi tranquilamente aplanada e o assunto reposto na sua verdade (as percentagens ou permilagens que foram divulgadas, em muitos casos eram falsas). Sem que fosse necessário insultar ninguém, nem ir além de um debate sereno e esclarecedor. Além disso, a Ordem tem tido uma militância cívica intensa na contestação do actual regime de acesso ao Direito, por considerar que este está vedado a muitos cidadãos pobres. Simultaneamente, temos uma outra batalha: conseguir que o Estado honre os seus compromissos com os advogados.
EXP. — E tem pago atempadamente esses honorários, das defesas oficiosas?
R.A. — O Estado nunca pagou tanto a advogados como durante 2005. Nunca como este ano, no quadro do trabalho intenso de negociação e levantamento com o Ministério da Justiça e com o Instituto de Gestão Financeira e Patrimonial da Justiça, se disponibilizou tanto dinheiro para advogados. Mas, infelizmente, ainda está muito por pagar. Trata-se de um trabalho de negociação, de levantamento exaustivo, de denúncias de situações de atraso, que se faz com uma certa discrição. Eu acho curioso que me acusem de ser discreto: é uma acusação que, em 44 anos de idade, nunca tinha ouvido.
EXP. — A ideia anunciada pelo ministro da Justiça no Congresso dos Advogados, de se passar para um regime de avenças para os advogados oficiosos, partiu da Ordem?
R.A. — Claro. O senhor ministro é muito receptivo a esta nossa ideia de criar um sistema de pagamento fixo mensal, embora variável: esse sistema será devidamente estruturado para que o advogado atinja um determinado valor de nomeações e de presenças e que seja remunerado em base mensal, directamente pelo Ministério, a partir de uma indicação da Ordem, conferida pelas entidades onde a nomeação é executada. Esperamos que em 2006 isto seja concretizado.
EXP. — Concorda com a intenção de rever as transferências do Estado para a Caixa de Previdência dos Advogados?
R.A. — Eu não sei qual é a intenção do Governo, mas não pode ser induzido por informações erradas para tratar de um dossier tão delicado. A razão histórica das transferências, quer para a Caixa de Previdência quer para a Ordem dos Advogados, é muito simples: tratava-se de valores pagos pêlos nossos clientes, em que esses clientes funcionavam um pouco como a nossa «entidade patronal». Ou seja, o cliente, através de uma cobrança que era feita pelo tribunal, ajudava a financiar a Caixa. E uma coisa adquirida ao longo de décadas e que só agora sofreu contestação. Não é o Estado mas as partes que estão a financiar. E estamos a falar de financiamento da Caixa e não do advogado.
EXP. — O que é que este Governo tem feito bem e o que é que tem feito mal, em matéria de Justiça?
R.A. — Começou por fazer uma coisa muito mal, que inquinou o contacto posterior com os magistrados, os advogados, os funcionários e os cidadãos: o diploma das férias judiciais. Foi um erro de forma e de fundo, pois não trouxe nenhuma mais-valia de utilidade para os tribunais, ao contrário do que se apregoou, e criou um antagonismo entre o Ministério e as magistraturas, os advogados e os próprios cidadãos, altamente prejudicial. O Governo, de então para cá, tem procurado corrigir essa atitude beligerante, que, aliás, não tem nenhum sustento na pessoa do ministro da Justiça, que é uma pessoa extremamente elegante e receptiva a ideias que lhe são transmitidas.
EXP. — Acha que ele vai voltar atrás, nas férias judiciais?
R.A. — Se houver a serenidade de fazer uma análise apenas com base no mérito do diploma, ele irá voltar atrás. Se isto se transformar num braço-de-ferro entre A e B, para ver quem ganha, então haverá quem não queira perder e não faça voltar o diploma atrás. Apesar destas críticas, o ministro tem vindo a amadurecer um diagnóstico e um conjunto de soluções que, em muitos casos, merecem o nosso aplauso. Por exemplo, na reforma da acção executiva [acções para cobrança de dívidas], tomou medidas positivas, embora não suficientes. O Governo, por vezes, arquitecta bem e faz mal os projectos de execução. Mas, com excepção do projecto das férias judicias, que é um mau projecto e foi pessimamente executado, o Governo agora tem feito alguns projectos que merecem o acolhimento, creio eu, da generalidade das chamadas profissões judiciais e até dos cidadãos.
EXP. — Que posição vai a Ordem assumir quanto ao segredo de Justiça?
R.A. — O segredo de Justiça, tal como está, é um instituto que faz, perante os cidadãos, uma figura triste. Na nossa opinião, o segredo de Justiça só deve ser utilizado quando for preciso: quando a revelação da identidade das pessoas numa fase precoce do processo possa trazer graves danos ao seu bom-nome e à sua intimidade, ou, então, quando as investigações podem ser colocadas em risco pela revelação de factos do processo. Portanto, deveríamos ter a publicidade como regra e o segredo de Justiça só deveria ser decretado para defender uma destas preocupações.
EXP. — Compreenderia que Souto Moura fosse substituído antes do final do mandato?
R.A. — Se houvesse razões fortes para ele ser substituído ou se ele próprio quisesse sair, compreenderia. Mas, muito mais importante do que discutir se deve terminar o mandato, é discutir as razões pelas quais esse problema está em cima da mesa: os métodos de investigação do Ministério Público (MP). Tenho muita consideração pessoal pelo Dr. Souto Moura e acho que ele tem de estar preparado para dar explicações públicas sobre o MP. E um problema de cidadania saber como é que em Portugal se faz investigação criminal, por que é que as pessoas são detidas à sexta-feira à tarde e por que é que há tantas detenções...
EXP. — Como aprecia o trabalho dele à frente do MP?
R.A. — Todos temos vivido circunstâncias muito difíceis, para as quais não estávamos preparados. E todos nós somos julgados pêlos factos mais visíveis ia nossa actividade, que correspondem, por vezes, a percentagens reduzidas da mesma. O Dr. Souto Moura tem estes oito meses que lhe faltam de mandato para ter um papel relevantíssimo na promoção do debate sobre a investigação criminal e tem muito tempo ainda para sair com nota positiva.
EXP. — Em que estava a pensar quando disse «estamos a assistir ao maior ataque de sempre à advocacia»? Na «Operação Furacão»?
R.A. — Não. Estava a pensar na directiva europeia de combate ao terrorismo e à repressão do branqueamento de capitais, que desrespeita de uma forma atroz e demagógica o segredo profissional dos advogados (apresentar-se o ataque ao segredo profissional dos advogados como uma forma eficaz de combater a criminalidade organizada é uma falácia, porque os advogados que colaboram nesses actos têm de ser tratados é como co-autores do crime e não como advogados). Estava ainda a pensar no afastamento que os advogados têm tido de algumas fases essenciais na nossa lei processual (nomeadamente em matéria de inquérito e instrução criminais). Estava a pensar numa tentativa de vender a imagem dos advogados como coniventes de operações criminosas. E ainda na «campanha anti-recursos» — tão na moda, com a alegação de que há quem abuse dos recursos, quando é óbvio que são um elemento essencial a uma boa gestão do processo e uma conquista democrática secular.
EXP. — Como conviveu com o facto de o seu escritório ter sido alvo de uma busca, no âmbito do inquérito a José Luís Judas?
R.A. — Não foi o meu escritório, foi o de um colega meu que tem escritório no mesmo sítio que eu. Convivi com naturalidade. A única coisa que eu considerei um pouco panfletária foi a alusão ao meu nome quando, efectivamente, não era eu que estava em causa.
EXP. — Concorda ou não que deveria haver regras para a contratação dos advogados do Estado? E não acha que os nomes desses advogados deveriam ser divulgados?
R.A. — Claro que sim, desde que não vá bulir com o segredo profissional. Deve haver regras — mas que regras? Não me parece que as regras da contratação pública, só por si, sejam replicáveis para a advocacia. Construir um edifício não é o mesmo que dar tratamento jurídico a uma questão. Deveria fixar-se uma doutrina e acho que compete à Assembleia da República dar o primeiro passo na definição dessas regras.
EXP. — Qual foi o problema das declarações de José Miguel Júdice (de que o Estado, quando quer escolher advogados, deve consultar as três principais sociedades de advogados)?
R.A. — Está a correr um processo no Conselho Superior por causa dessa matéria e eu não quero dar a minha opinião.
EXP. — Mas ele fez uma acusação muito grave: que o presidente do Conselho Superior, Laureano Santos, lhe disse: «Não se preocupe pois vai ser tudo arquivado». E, que eu saiba, Laureano Santos não o desmentiu.
R.A. — Custa-me ver esse tipo de discussão a ser tratado publicamente, mas as pessoas são diferentes, dizem aquilo que entendem, nos termos que acabou de reproduzir. É uma matéria dolorosa que existe hoje no nosso seio, mas não quero para já pronunciar-me.
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