As fracturas e descontinuidades nos valores, referências e também nas instituições, que são, como se diz, paradigma da nossa contemporaneidade, produzem marcas vincadas, e na urgência do tempo não deixam espaço próprio para apreensão dos modelos subjectivos de percepção das novas realidades.
Novos poderes emergentes (sejam o quarto ou o quinto), “poderes de facto” nos modelos de análise tradicionais, tomam, na realidade fugaz da urgência, o espaço deixado em aberto pelo recuo dos poderes institucionais, impondo-lhes a agenda e pretendendo substituir-lhes a decisão.
As instituições da justiça são, porventura, as mais resistentes à fragmentaridade, mas, paradoxalmente, as mais vulneráveis à sobreposição e à aceitação em algumas representações sociais da intervenção dos poderes informais, a coberto da exigência (necessária como cumprimento do princípio democrático, mas inteiramente ambígua nas formulações) de escrutínio e das recorrentes referências à ausência de escrutínio sobre a justiça.
Mas, mesmo nesta perspectiva, alguma atenção às verificações empíricas revela que muitos dos elementos da dimensão da crise de confiança potenciados através do discurso da ausência de escrutínio, nascem da visibilidade de uma série “pequenos nadas” crescendo em progressão geométrica.
Coisas simples, que um pouco de cuidado, de atenção e de comunicação permitiriam evitar sem complexidade, quando se não interiorize uma assunção conceptual de independência que nada tem que ver com a dimensão real e estatutária pressuposta à função de julgar.
A independência, que não constitui privilégio dos juízes, mas direito fundamental dos cidadãos a dispor de tribunais integrados por juízes independentes, deve assumir-se sobretudo como dever de forte intensidade e não tanto como componente do exercício de um poder, que de qualquer modo nunca pode ser exercício voluntarista e pessoal.
Por isso, a independência não sai diminuída no necessário estabelecimento de uma comunicação informativa e esclarecedora dos cidadãos sobre actos e consequências do quotidiano que, se não forem explicados ou compreendidos, não são facilmente aceitáveis e fracturam a confiança.
A atenção deve centrar-se, por vezes e de modo cuidado, nos actos banais do dia a dia, que tocam directamente os cidadãos obrigados a colaborar e a contactar com o sistema.
A explicação perceptível e urbana sobre o conteúdo, significado e consequências de uma notificação; a prevenção do “overbooking” nos agendamentos e a informação precisa, com indicação dos motivos, sobre as causas de adiamento de um acto que pode ter perturbado a organização dos dias de vários intervenientes; o cumprimento dos horários designados para os actos no respeito para com os cidadãos que neles participam; a gestão rigorosa da necessidade de colaboração de intervenientes acidentais (v. g., testemunhas), sem chamamentos de pouca utilidade ou não concentrados; ou modos e critérios de tratamento e interpelação no processo, e a atenção a muitos outros “pequenos nadas” do dia a dia, permitiriam cortar momentos de incomodidade e incompreensão e melhorar a percepção real e simbólica dos cidadãos sobre a instituição.
A independência não impede a comunicação quando se revele necessária, e a comunicação, seja feita pelos próprios magistrados quando o considerem conveniente, ou através da secretaria sob instruções e supervisão suas, poderá prevenir incompreensões e a rejeição de procedimentos que, se não forem adequadamente explicados, um cidadão poderá, razoavelmente, ter dificuldade em aceitar.
A reintegração por dentro deve começar precisamente – e é tão simples – pelo cuidado com as pequenas coisas do quotidiano.
A. H. Gaspar, in Blog Sine Die
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