O título que dou foi a primeira ideia que me ocorreu quando, descansadamente vendo o telejornal de hora de jantar, ouvi declarações de S.Ex.ª o Ministro da Justiça que não sei, evidentemente, reproduzir na íntegra mas que, em síntese, davam conta da possibilidade de apresentação de proposta de lei tendo em vista a reformulação do sistema de recrutamento de magistrados em que, designadamente, se prevê a possibilidade de acesso às Magistraturas (em geral e à judicial em particular) de cidadãos não formados em direito - "por exemplo economistas ou sociólogos".
O objectivo seria "alargar as magistraturas a novos saberes, novas experiências" (as aspas podem não ser inteiramente correctas e "assim melhor dotar a magistratura para fazer face aos desafios do século XXI".
Depois da primeira reacção, do - Ai Jesus! ou Deus nos acuda! procurei analisar um pouco mais friamente a ideia (que, aliás, já ouvira como rumor mas nunca tão claramente expressa por um governante e, ainda para mais, Ministro da Justiça).Analisando percebi que a medida (melhor dito, a mera menção pública da ideia) pode ter duas leituras - uma positiva e uma negativa.
A visão "benigna" é que se trata, meramente, de mais um capítulo na campanha de descredibilização pública dos Juizes que este executivo tem vindo a fazer desde o primeiro minuto da sua actuação.
A ser assim a ideia não terá andamento, esgotando-se no anúncio da possibilidade.Esta visão "benigna" ganha força se se pensar que apenas é apontada a possibilidade de acesso de não juristas às magistraturas. Ora se a ideia é trazer lufadas de conhecimento fresco à acção da justiça faria sentido alargar tal princípio a todas as profissões forenses... Por aí, tenho a certeza, nenhum executivo se atreverá a ir porque tem noção da verdadeira força relativa das chamadas corporações...
Isto é, não a alargando a todos os operadores não faz sentido anunciar tal medida, a menos que o propósito da mesma se esgote no mero anúncio.Se esta era a visão "boa" (porque inóqua) a "má" é verdadeiramente preocupante, numa dupla medida.É preocupante, em primeiro lugar, porque confirma aquilo que, infelizmente, todos os Juizes já suspeitavam - o responsável executivo pela área da justiça não faz a menor ideia, não tem sequer uma vaga imagem daquele que é o exercício concreto da função judicial (o que é tanto mais estranho tratando-se também de pessoa que exerceu no foro).
A função de administrar a justiça tem, como todas, as suas ferramentas. É essencial que o julgador não tenha só as ferramentas ditas "técnicas". Que tenha formação cultural, humana, cultural, económica. Em síntese que não seja um mero tecnocrata do direito mas um cidadão com uma mundividência tão abrangente quanto possível.
Isto é uma coisa. Outra, inteiramente diversa e absurda (a palavra tem que ser esta - absurda) é pensar-se sequer que é possível ser Juiz sem ter uma sólida formação jurídica de base (função para a qual o CEJ tem cumprido cabalmente a sua função mas que terá, necessariamente, que ser complementar da formação académica). O direito é a ferramenta de trabalho primeira do Juiz. Assim sempre foi e assim sempre será.
A visão "maligna" é preocupante, em segundo lugar, porque traduz a prática cada vez mais divulgada, em todas as áreas de decisão e não apenas na justiça, de acolher cegamente a visão que determinadas pessoas exteriores ao sistema tradicional têm daquilo que devem ser as reformas a implentar.
Explicando, esta medida, há que dizê-lo, não é mais que o consagrar a ideia, solicitada em "outsourcing" (para usar o termo em voga) ao Observatório Sobre a Justiça sobre uma espécie de "medida-sensacional" para alterar o estado da Justiça.
Nada tenho contra a ideia geral de colaboração de entidades exteriores ao sistema na melhoria do mesmo (bem pelo contrário - tal contributo é essencial para evitar opacidade e autismo).
Nada tenho em concreto contra o Observatório e o seu muito louvável trabalho.Incomodam-me, isso sim, que a opinião ou as opiniões de quem conhece a fundo os problemas, as opiniões intra-sistema não sejam minimamente consideradas ou sequer ouvidas (e não me refiro, evidentemente, só a Juizes mas a todos operadores). Como se, pelo facto de se trabalhar na justiça se tivesse necessariamente uma ideia deturpada do problema e das soluções. Talvez se trate, tão só, da ideia bacoca que existirá um grupo de iluminados que, com uma solução brilhante e milagrosa (e barata...) tudo mudará...
Incomoda-me, por fim, já no que concerne ao Observatório em concreto, que possa sequer fazer e manter tal sugestão (se todos estamos sujeitos a crítica o Observatório e o Prof. Boaventura de Sousa Santos também o estão). A ideia é absurda. Se uma entidade que tanto trabalho tem desenvolvido produz tal sugestão (ou a pessoa do seu máximo responsável) das duas uma: - Ou, como diz o povo, muito observou e pouco viu ou traçou uma bem pensada estratégia de longo prazo para, por acção dos magistrados na Justiça, induzir alterações no conjunto da ordem e da estrutura sociais. Uma espécie de mudança utópica da sociedade por acção de juizes (provenientes, claro, de áreas de saber diversas do direito, especialmente psicologia e sociologia). Esta ideia ganha definição se pensarmos no posicionamento civico-político do responsável máximo do Observatório.
É preocupante. Não, claro, qualquer alteração social (não é isso que aqui discutimos, sequer vagamente). É preocupante que possam vingar ideias de instrumentalização dos juizes e da sua função, desde o período de formação (aliás, principalmente desde a formação) com fins políticos.É preocupante e é preocupante que,aparentemente, as ideias venham fazendo caminho, que alguém as ouça e reproduza e então se esse alguém é o Ministro da justiça - Ai Jesus...
Porque este blog é positivo posso, em conclusão, acabar com uma ideia mais alegre. Podemos ter a esperança que o princípio de abertura se vai alargar a todas as áreas e funções. A formação de base tornar-se-á despicienda e, com uma formação pós-faculdade a qualquer função qualquer pessoa poderá aceder.
Pense-se na liberdade, nas múltiplas possibilidades que tal dará a todos os cidadãos.Por mim, ante o degradar do estatuto socio-económico dos Juizes, sugiro talvez dois/três anos de estudo da morfologia do cérebro e espero estar apto a despir a preta beca e a vestir a bata branca de neuro-cirurgião.
Como diria o saudoso Peça e esta hã?
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