Vamos então falar de Justiça. A semana que passou iniciou-se com um seminário de dois dias no Centro de Estudos Judiciários que teve como pretexto a revisão da Lei Orgânica dessa escola ou centro de formação de Juízes e Procuradores da República. Essa reunião serviu também para, a sua margem, lançar mais um insensato e insidioso ataque aos Juízes; estou a referir-me à possibilidade da abertura da função de julgar a pessoas não licenciadas em Direito (já agora, porque não permitir também que tais pessoas sejam Procuradores da República ou Advogados ou Professores de Direito ? E que tal permitir-se o exercício da Medicina a quem não possua essa habilitação – sei lá, um sociólogo a fazer operações ao cérebro, porque não ? ).
Numa das sessões de debate, o Professor Faria e Costa, um verdadeiro Mestre (no sentido etimológico do termo e não em grau académico), chamou a atenção para a necessidade de mais Direito e ainda mais Direito, na formação dos profissionais do Foro. Como é óbvio – quer dizer, para mim é óbvio – rapidamente secundei essa posição (não tendo sido o único a apoiar essa proposição).
Porque a verdade é esta, esta sistemática e perigosa desvalorização do jurídico constitui objectivamente (ou seja, quer as pessoas o queiram quer não) uma desvalorização do Estado de Direito.
De facto, o Mercado (a Economia) entregue a si próprio gera o Monopólio e a Sociologia produz o domínio dos mais fortes – e os mais fortes não são os melhores. Querem um exemplo. Estou a escrever este texto no universo Windows da Microsoft, que é aquele que tem o domínio do mercado. Ora tecnológica e até economicamente (é o mais barato para o utilizador) o sistema da Apple é melhor, mas não foi ele que vingou. E os exemplos poderiam multiplicar-se até à exaustão (minha, de os escrever, e vossa, de me estarem a ler).
Só os princípios imanentes ao Estado de Direito – logo, o universo do jurídico – permitem, embora não garantam (é por isso que a Democracia e o Estado de Direito são construções permanentes e não dados adquiridos), o triunfo dos melhores e não os outros que o não são, mas também e ao mesmo tempo, o não esmagamento dos menos qualificados. Sendo que os melhores são aqueles que sabem que não são omniscientes e que, como toda a gente, podem falhar e efectivamente, às vezes, falham.
Aliás, a insídia contra os juristas (e em particular contra os Juízes) só pode grassar com esta impunidade porque, durante demasiado tempo, nós – enquanto grupo social, porque houve sempre vozes que individualmente pregaram no deserto – nos esquecemos que não existimos para nosso bel-prazer, para nos refastelarmos nascisicamente nos nossos umbigos (isto é, nas nossas discussões em circuito fechado), mas sim para cumprir uma finalidade social à qual não estamos actualmente a dar satisfação. A crise na Justiça existe mesmo, mesmo que seja (e é-o também) uma crise do País e, mais genericamente, porque o mal não é só nosso, até de Civilização (porém, fora do chamado Mundo Ocidental, é impossível a crise porque sistema de Justiça é uma força de expressão).
Claro que este direito de que o Professor Faria e Costa e eu falamos não é o direito positivista mas o direito que ao mesmo tempo que está profundamente mergulhado na vida e no quotidiano das pessoas concretas, está imbuído dos Valores que dão consistência ao nosso Modo de Vida e sem os quais (mas exercitados e não meramente proclamados) esse Modo de Vida não existiria. E é o direito que aceita a intervenção dos outros saberes, porque é assim, complexa, rica e variada, que é a Vida. Mas que não se omite e não se envergonha, mesmo que se arrependa.
E é com o ânimo e a força desse Direito e desses Valores que aqui me refiro à ignomínia que teve lugar em Vila de Rei. Qualquer ideologia, seja qual for o seu disfarce (especialmente quando se arma em religião ou em ciência ou em patriotismo) que propõe a sua superioridade em relação a outros é terrorista, porque, em última análise, propõe a eliminação do Outro. Tolerância zero para os intolerantes.
É por isso que não é tolerável a permissividade que o Estado tem mantido com as claques dos clubes de futebol. O Polvo tem, afinal, mais braços do que se pensa.
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