Esta questão foi recentemente suscitada num debate sobre a reforma do CEJ.Pode ser encarada de duas formas diferentes:Uma abordagem abstracta, académica, buscando elementos de direito comparado que possam validamente ser aproveitados para o nosso sistema.
Uma abordagem mais concreta e conjuntural que tenha em consideração o estado actual da justiça portuguesa e os fenómenos que conjunturalmente mais a influenciam, colocando nos pratos da balança a possibilidade da abertura da magistratura cidadãos sem formação jurídica.
Creio que a crónica que sobre este tema fez o meu Amigo Francisco Teixeira da Mota no passado dia 14 no “Público” é tributária da primeira abordagem.
E não me restam dúvidas de que as intervenções no debate sobre o CEJ são tributárias da segunda abordagem.
Do ponto de vista abstracto, pois é claro que há sistemas em que a titularidade da judicatura por cidadãos não juristas é importante – são os sistemas da chamada “common law” (Grã Bretanha, Estados Unidos), com uma longa tradição de envolvimento dos cidadãos na aplicação da justiça, onde também a instituição do júri ou do sistema de jurados faz parte da espinha dorsal do sistema.
Não é o caso dos países da chamada “civil law” (França, Espanha, Itália, Portugal), de raiz romanista, que tiveram uma evolução histórica completamente diferente, baseada no “Corpus Juris Civilis”, em que predomina o direito codificado.
No entanto os dois sistemas sofrem alguma inter-penetração mútua, cada um adoptando institutos do outro.
A questão que aqui se põe é se o sistema português em concreto, aqui e agora, tem ou não tem a ganhar com a criação da figura do magistrado não jurista.
Sabemos à partida que alguns institutos da “common law” têm dado resultados pouco animadores nos países de direito romanista.
Desde logo registamos que hoje em dia são admitidos jurados e juízes sociais no nosso sistema (artº 207º da Constituição), aqueles para o julgamento de crimes mais graves, estes para o julgamento de casos que envolvam direitos laborais, de infracções contra a saúde pública, de menores, de pequenos delitos, de execução de penas ou outras em que se justifique uma especial ponderação dos valores sociais ofendidos.
O mesmo artigo estabelece também que a lei poderá estabelecer a participação de assessores tecnicamente qualificados para o julgamento de determinadas matérias; não tenho notícia de esta previsão constitucional ter sido sequer regulamentada – e, evidentemente, muito menos aplicada.
Relativamente ao júri e aos juízes sociais, é consabido que a sua utilização se tem cifrado em resultados muito modestos.
Ora a nova proposta só fará sentido se os limites do artº 207º da Constituição forem substancialmente alterados.O alargamento desses limites implica a alteração radical da carreira judicial, grandes modificações das leis processuais e alterações radicais do próprio regime substantivo das questões que se pretendem tratar.
Dito de outra forma, qualquer proposta de abertura da magistratura a não juristas implica uma vastíssima reforma legislativa envolvendo a carreira judicial, os regimes jurídicos fixados nos códigos de direito substantivo e as leis processuais, não só as codificadas como também as extravagantes (salta-se do 8 para o 80 sem sequer terem sido ensaiadas as soluções intermédias previstas na própria Constituição...).
Daí que se possa entender que apresentar a proposta inicial desinserida de uma vasta reforma da justiça, é puro disparate (vide o que escreve o Dr. Nuno Garoupa no seu blog (http://reformadajustica.blogspot.com/2006/05/magistrados-sem-formao-em-direito.html).
Sem estar em total desacordo com essa ideia, creio que, mais do que disparatada, esta proposta é fruto da política governamental de sucessivos anúncios mediaticamente "atraentes" e que para pouco mais servem do que para manter um estado de agitação permanente nas áreas que se pretende "reformar", como diz o Dr. Teixeira da Mota na crónica acima referida.
Descodificando: a ideia lançada no debate sobre a reforma do CEJ da abertura da magistratura a cidadãos não juristas é, nada mais nada menos, do que puro “sound byte” para jornalista ouvir e transmitir, com vista à avaliação das reacções, quer dos magistrados, quer da advocacia, quer do público em geral.
Ora este “estado de agitação permanente” dos Tribunais é francamente nocivo e está a conduzir ao seu cada vez menor desempenho, o que as estatísticas do final das próximas férias judiciais de Verão decerto irão demonstrar – a desestabilização permanente das instituições tem um preço elevado ao nível do seu desempenho, como toda a gente sabe.
Lançar para a discussão pública um tema destes desacompanhado de um projecto de reforma legislativa em que tal aspecto esteja contemplado, é redutor e desleal – redutor porque não é possível chegar-se a conclusões com tal falta de elementos, desleal porque se está a provocar a tomada de posições dos diversos sectores sem que sejam conhecidas as suas condicionantes mais salientes, levando as pessoas a criarem raciocínios e a tomarem posições sobre hipóteses que poderão nem se vir a verificar.
É uma não discussão, um não debate, um jogo de enganos em que são trocadas ideias pouco rigorosas e viciadas à partida por falta de informação, até porque uma reforma legislativa dessa dimensão precisava de se apoiar numa profunda e completa revisão constitucional, sobre a qual ninguém falou até agora – e que não depende só da vontade dos governantes e do partido que os apoia.
Daí que se justifique uma postura de cepticismo e de pouca abertura para esta proposta, que no contexto em que foi formulada (se é que chegou a ser formulada – e essa indefinição é outro aspecto polémico e algo caricato da questão) é redutora e pouco rigorosa, e no fundo se traduz num mero “sound byte” exploratório e inconsistente.
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