Anda por aí, no universo concentrado de certos blogs algo bafientos, uma pretensa polémica sobre o advento de uma república de juízes, a propósito da putativa e temida invasão da esfera política, pelos tribunais, neste caso administrativos.
A ideia que peregrina já por aí e vai arregimentando agravados, sempre os mesmos aliás, exprime-se em postais de frases simples que concitam a indignação pública por mais este atrevimento do poder judicial para com o poder político executivo, eleito indirectamente pelo povo e que se apresenta como fonte límpida de toda a legitimidade em confronto com o poder judicial que ninguém elegeu e que por isso sofre de acentuada capitis diminutio que tolhe na capacidade de expressão pública.
São ideias veiculadas pelos mesmos de sempre e que se afadigam constantemente em negar ao poder judicial a legitimidade que lhe advém da independência e das garantias que a asseguram. Confortando-se sempre num papel deslegitimador e sintonizando pela assimetria dos diversos poderes do Estado, em que o vértice de supremacia é colocado no poder político, de preferência executivo. De pouco adianta conhecerem o ditado sobre o exercício do poder que corrompe ou mais prosaicamente conhecerem o modo de escolha dos representantes do povo. A desconfiança atávica para com o poder judicial, leva-os a paroxismos de hostilidade sempre que estes dois poderes se cruzam – e escolhem um lado, contra o outro; por vezes até contra si mesmos, porque o poder judicial julga em nome do povo e é notório que quem toma partido, fá-lo muitas vezes, por ser de partido bem posto e só por isso. .
Embora o tema seja glosado de vez em quando pelos habituais comentadores de bancada, alguns transformam-se em massagistas do poder político executivo do momento, exemplo vivo dos apontados recentemente por um despeitado Manuel Maria e um intrépido Rangel.
Não respeitam por isso a legitimidade do outro poder e revelam abertamente a hostilidade que os consome, pontapeando os seus representantes e cuspindo na sopa do sistema que ajudaram a criar e que nesses casos não os serve porque não admitem o controlo de legalidade por quem não foi eleito e por isso, no entender deles se quer substituir à república, criando uma autonomia que lhes parece arrevezada e espúria .
É um problema sério pelo que revela de desconhecimento( nalguns casos simples má-fé) acerca do equilíbrio e fiscalização dos vários poderes do Estado e das suas instituições.
Desta vez, os pontapés dirigem-se aos juízes de vários tribunais administrativos e fiscais que se pronunciaram já pela admissibilidade de providências cautelares com vista ao impedimento do encerramento de vários blocos de partos de alguns hospitais do país.
A questão é simples, aparentemente: podem os juízes dos tribunais administrativos sindicar actos do poder executivo?
A resposta óbvia depende da natureza dos actos e da competência que a lei determina para esses tribunais.
Nada melhor, para isso, do que ler a lei que enforma o âmbito dessa jurisdição e procurar saber que tipo de acto foi sindicado por quem colocou a acção, neste caso, a providência cautelar.
Artigo 4.º do Estatuto dos tribunais administrativos e fiscais.
Âmbito da jurisdição
1 - Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto:
a) Tutela de direitos fundamentais, bem como dos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares directamente fundados em normas de direito administrativo ou fiscal ou decorrentes de actos jurídicos praticados ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal;
b) Fiscalização da legalidade das normas e demais actos jurídicos emanados por pessoas colectivas de direito público ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal, bem como a verificação da invalidade de quaisquer contratos que directamente resulte da invalidade do acto administrativo no qual se fundou a respectiva celebração;
c) Fiscalização da legalidade de actos materialmente administrativos praticados por quaisquer órgãos do Estado ou das Regiões Autónomas, ainda que não pertençam à Administração Pública;
d) Fiscalização da legalidade das normas e demais actos jurídicos praticados por sujeitos privados, designadamente concessionários, no exercício de poderes administrativos;
e) Questões relativas à validade de actos pré-contratuais e à interpretação, validade e execução de contratos a respeito dos quais haja lei específica que os submeta, ou que admita que sejam submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público;
f) Questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível de acto administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos do respectivo regime substantivo, ou de contratos que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público;
g) Responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo por danos resultantes do exercício da função política e legislativa, nos termos da lei, bem como a resultante do funcionamento da administração da justiça;
h) Responsabilidade civil extracontratual dos titulares de órgãos, funcionários, agentes e demais servidores públicos;
i) Responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público;
j) Relações jurídicas entre pessoas colectivas de direito público ou entre órgãos públicos, no âmbito dos interesses que lhes cumpre prosseguir;
l) Promoção da prevenção, da cessação ou da perseguição judicial de infracções cometidas por entidades públicas contra valores e bens constitucionalmente protegidos como a saúde pública, o ambiente, o urbanismo, o ordenamento do território, a qualidade de vida, o património cultural e os bens do Estado, das Regiões Autónomas e das autarquias locais;
m) Contencioso eleitoral relativo a órgãos de pessoas colectivas de direito público para que não seja competente outro tribunal;
n) Execução das sentenças proferidas pela jurisdição administrativa e fiscal.
2 - Está nomeadamente excluída do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objecto a impugnação de:
a) Actos praticados no exercício da função política e legislativa;
b) Decisões jurisdicionais proferidas por tribunais não integrados na jurisdição administrativa e fiscal;
c) Actos relativos ao inquérito e instrução criminais, ao exercício da acção penal e à execução das respectivas decisões.
3 - Ficam igualmente excluídas do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal:
a) A apreciação das acções de responsabilidade por erro judiciário cometido por tribunais pertencentes a outras ordens de jurisdição, bem como das correspondentes acções de regresso;
b) A fiscalização dos actos materialmente administrativos praticados pelo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça;
c) A fiscalização dos actos materialmente administrativos praticados pelo Conselho Superior da Magistratura e pelo seu Presidente;
d) A apreciação de litígios emergentes de contratos individuais de trabalho, que não conferem a qualidade de agente administrativo, ainda que uma das partes seja uma pessoa colectiva de direito público.
Como é bom de ler, fica excluída da apreciação destes tribunais a apreciação de litígios que tenham por objecto a impugnação de “Actos praticados no exercício da função política e legislativa”;
Será este o caso, nos casos já conhecidos de Barcelos, Castelo Branco, Porto ?! A resposta é eminentemente técnica e competirá precisamente aos tribunais dá-la, com os fundamentos que serão conhecidos, certamente. A primeira frase que um juiz escreve numa sentença é precisamente "O tribunal é competente" ; ou "não é competente...", transpondo nessa frase todo um conjunto de saberes técnicos sobre a competência material, territorial, etc.
Não obstante o desconhecimento concreto sobre o conteúdo preciso das decisões tomadas por esses tribunais, sabemos já pela opinião avalizada de pessoas tão competentes nesta matéria como é o director do Público, José Manuel Fernandes, confessado leitor de blogs, que as decisões dos juízes sobre estas providências cautelares, exemplificando com um caso concreto de Penafiel, correspondem a “violação grosseira do princípio da separação de poderes.” , acrescentando logo a seguir que se avizinha o perigo do advento da tal “república de juízes”…insinuando en passant que tal decisão insólita se poderá ficar também a dever “á guerra surda que os magistrados judiciais travam com o actual Executivo”.
Ah! E Vital Moreira já veio secundar…no seu blogue “think tank”, escrevendo algo a propósito. Sem responder à pergunta fundamentada, responda àquilo que lhe interessa: “o julgamento dessa decisão só pode ser de natureza política. No dia em que os tribunais pudessem julgar sobre a bondade, ou não, de políticas públicas, estaria em causa um dos fundamentos básicos do governo representativo, ou seja, a separação de poderes.”
“Só pode ser…”, tal como em outras ocasiões recentes, só pode mesmo ser aquilo que parece. Ou não se tratasse de um comentário político.
In GLQL
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