Juiz António Ramos analisa situações que estão na origem da morosidade da Justiça
“Acho importante que, antes de se mexer num tribunal, seja na sua estrutura ou no funcionamento, se tente perceber como funciona (...) A questão das férias judiciais é um mito”, defende o juiz António Ramos, quando questionado sobre a tão propalada morosidade da justiça e o descontentamento que grassa no meio judicial.
Magistrado no Tribunal de S. João Novo, onde desempenha as funções de juiz-administrador da Secretaria-Geral das Varas e Juízos Criminais do Porto, aceita que alguns dos métodos processuais, nomeadamente os recursos, contribuem para a dilatação do tempo de duração de muitos processos e, sobre este assunto é taxativo: “Vivemos acima das nossas possibilidades em termos legislativos”.
Em entrevista ao JUSTIÇA & CIDADANIA, António Ramos recorda que os magistrados são “titulares de órgãos de soberania”, e não órgãos de soberania, defendendo que devem lutar por condições melhores, em termos do exercício da profissão, mas sempre com uma dose de “bom senso” no comportamento e nas opiniões.
Como está a funcionar o Tribunal de S. João Novo, a nível logístico?
Este edifício é antigo e penso que considerado património. É um edifício muito bonito, gostamos muito dele, está bem situado e tem condições para funcionarem aqui as Varas, muito embora, em termos de modernização… não é fácil, tem as limitações próprias.
Mas acontece ou não, como noutros tribunais, que, às vezes, enfrentam perigo de ruir?
Estamos com um problema desses. Tivemos uma cedência repentina ao nível do soalho, num sector, e já cá veio a Protecção Civil duas vezes. A cedência foi de cerca de dois centímetros, de uma vez, e a média de pessoas que costuma cá vir, fora quem cá trabalha, é de 150 pessoas, e nunca menos em dia de julgamentos. O relatório da Protecção Civil garante segurança. Entretanto, estão agendadas obras, mas já vai fazer três anos que deveriam ter sido feitas pelo menos obras de emergência, e a informação que tenho é que foi lançado um concurso para ser adjudicada a obra nessa altura, mas não sei quando é que vão começar. Neste intervalo, ruiu um tecto e temos uma sala de audiências, na terceira Vara, onde caíram também uns três metros quadrados de tecto, deixando um ar condicionado natural.
Tenho uma gestão de administração – aliás, dou a entrevista como juiz-administrador da Secretaria-Geral das Varas e Juízos Criminais do Porto – e uma das minhas incumbências é a de zelar por isto, em estreita colaboração com o Senhor secretário-geral, embora praticamente sem autonomia, nem de decisão, nem financeira.
Estamos a falar de que verba?
Não faço ideia. Mas, estamos a falar de bastante dinheiro, uma vez que penso ser necessário reforçar todo um sector ao nível da estrutura...
Esta necessidade de obras urgentes já passou pelo gabinete de três ministros.
Nenhum teve capacidade para resolver o problema?
Penso que já era o governo do PSD. Aliás, era ministro da Justiça o Dr. José Pedro Aguiar-Branco quando cá vieram adjuntos ou assessores, três ou quatro, que eram do Norte, para fazerem o levantamento das necessidades. Falaram comigo, e o que lhes disse mantenho, porque acho que é essa a postura correcta (isto por causa da tal circular que entretanto saiu, que não é para nós, naturalmente, e que impede que se fale publicamente destes assuntos), pois que também entendo que as coisas têm que se resolver internamente. E só quando não se resolvem é que há necessidade de alertar, é evidente. E depois passa a ser notícia, se for caso disso. Agora, sei que havia procedimentos em curso que entretanto foram cancelados. Começaram logo depois da primeira intervenção da Protecção Civil, mesmo para ajuste directo das obras de emergência estavam no terreno quando foi a alteração do Governo. Actualmente, sei que foi lançado um concurso para as obras, mas nada mais.
O perigo continua?
Há um perigo relativo. A Protecção Civil garante que não há risco, mas com o mau tempo e a chuva propaga-se a degradação. Há todo um sector que está ser afectado. Há cerca de três anos foi pintado, mas tratou-se apenas de uma obra de cosmética.
Que volume de julgamentos existe neste Tribunal?
Não tenho números certos das outras Varas, mas a média é relativamente a mesma, até porque a distribuição é equilibrada. Penso que, em média, por semana – não quer dizer que acabem todos, porque há processos que demoram bastante –, cada juiz faz por semana meia dúzia de julgamentos. Somos doze, meia dúzia não é rigoroso, mas será uma média que penso ser equilibrada. Quando apanhamos processos de roubos com duas testemunhas, por exemplo, o julgamento faz-se em meia hora. Mas há muitos outros que demoram muito mais, sendo que alguns processos complexos chegam a demorar mais de um ano.
Há muitos processos acumulados?
O volume de trabalho varia conforme estivermos a entrar numa fase complicada em termos sociais. E isso reflecte-se logo nos tribunais. É um trabalho muito sensível a este tipo de evoluções. Este tem mais ou menos uma «matéria-prima» certa. Claro que também se ressente das alterações sociais. Mas, este tribunal tem um tipo de crime que tem muito a ver com a toxicodependência, o tráfico, o consumo ou os roubos que andam associados a isso. E depois, se calhar, nesta altura, metade dos crimes são de origem económica. Há muitos crimes fiscais. Depois, temos os homicídios. Mas, essas coisas já são pontuais.
Quando se fala da violência doméstica ou contra crianças, como seja o julgamento mediático que aqui decorre do caso Vanessa, estes são casos muito pontuais?
Temos alguns, mas não têm, digamos, grande dimensão… Tivemos recentemente aqui um processo que era o dos miúdos da Ordem do Terço, que, na altura, fecharam as instalações. De resto, há outros casos pontuais.
Quer dizer que, depois das obras feitas, este Tribunal fica com todas as condições necessárias para funcionar, tendo em conta o volume de trabalho que encerra?
Na minha opinião, que não é pacífica, as coisas passam-se assim: temos quatro Varas, com três juízes, mas há procuradores que se dividem; no fundo, cada procurador, em média, tem dois terços de uma Vara. Recentemente, houve uma classificação que nos referiu como um tribunal de eleição. Em termos de funcionamento está tudo bem, não há atrasos. Há processos que, às vezes, em menos de dois meses, têm a sentença transitada. Tem um índice de eficácia, em termos de trânsitos sem recursos, elevadíssimo. Posso dizer que, o ano passado, tive para aí cinco recursos e perto de cem sentenças. Portanto, é significativo. Mas, na minha opinião, este tribunal não pode ser visto pelo número de processos. Quando vim para cá, tínhamos processos da Maia, de Gondomar e de Valongo. Quando criaram círculos nessas localidades ficámos com os processos que tínhamos até aí, passando a receber apenas os da comarca do Porto, o que diminuiu em parte o volume de serviço. Neste momento, a pendência média andará, em números totais, para cada um, na ordem dos trezentos processos, e se calhar nem aí chegam, enquanto há colegas, noutros tribunais, com dois a três mil processos.
Três mil processos são um absurdo...Perfeitamente. Já tive quatro mil processos em Matosinhos e trabalhava quinze horas por dia. Já passei vinte anos em tribunais e este é aquele que está melhor. Aliás, vim para cá, naturalmente, sabendo disso. Apesar dos atrasos, quando existam, o sistema sempre funcionou, porque as pessoas aproveitavam tudo o que era férias, feriados e pontes, para se atirarem às coisas muito complicadas. E funcionou sempre assim. Havia ciclos de recuperação que eram impossíveis de se fazer no dia-a-dia. Naturalmente, isto varia muito conforme seja o Cível ou o Crime...
Quer explicar melhor?
No Cível, em termos de despacho corrente, é tudo muito mais demorado, porque mais técnico. Mas, é sempre possível um acordo e evitar o julgamento. O Crime tem o inconveniente da demora. Neste tribunal há poucos crimes com desistência de queixa. Portanto, a agenda ocupa-nos o dia todo. Para gerir os processos e para fazer as sentenças temos de ir buscar o tempo a algum sítio. Penso que a estrutura está ajustada às necessidades, mas, também, não era bom que fosse reduzida, porque corríamos o risco de ficar a funcionar como os outros tribunais. O exemplo tem que ser ao contrário. Não se pode estragar o que está bem, partindo do exemplo do que está mal. A política deve ser gerir racionalmente cada estrutura, tentando perceber as específicas características de cada tribunal.
Vê com bons olhos a criação da nova cidade judicial, recentemente anunciada, onde tudo vai ficar concentrado?
Vou dar uma opinião muito pessoal. Aqui há vinte anos, a tendência era para as empresas aglutinarem tudo, concentrarem tudo e produzirem tudo. Esta política inverteu-se completamente, sendo hoje de sentido diametralmente oposto, predominando a descentralização daquilo que é possível, mormente em termos de análise e redução de custos. Independentemente dessa não ser a melhor visão «empresarial», penso que a concentração de tudo, em termos funcionais, não é a melhor solução. Se verificarmos tudo o que se quer concentrar num espaço é fácil perceber o número de pessoas envolvidas e as implicações que isso comporta. Claro que permite racionalizar custos elevados, disso não tenho qualquer dúvida. E, nessa perspectiva, claro que é uma boa aposta, embora a Justiça seja um bem de satisfação passiva e para a sua satisfação não podem estar apenas razões economicistas.
Agora, não altera o funcionamento dos tribunais ao nível de quem lá trabalha, mesmo que estejam concentrados num só local.
Como assim?
Os funcionários e os magistrados que estão afectos aos processos não são rentabilizados por estarem no mesmo espaço. Desde há uns tempos a esta parte fala-se na flexibilização ao nível da movimentação dos funcionários, mas, em relação a nós, isso não pode ser feito. Não sou ostensivamente contra a concentração de todos os serviços num único local, mas, pessoalmente, não me parece que a concentração traga dividendos em termos de funcionalidade. Agora, que vai racionalizar os custos em termos de investimento, disso não tenho dúvidas, até porque, actualmente, há determinados espaços que não são do Estado e pelos quais se pagam rendas elevadíssimas.
No Tribunal de S. João Novo não há o risco dos julgamentos terem de ser repetidos, porque as gravações não ficam em condições?
Por regra, não. Essa situação só aconteceu uma ou duas vezes, em pequenos excertos de depoimentos.
Já cá chegou o choque tecnológico?
Não sei muito bem o que isso é. Temos o mínimo para trabalhar. Aliás, basta olhar para o computador que utilizo para perceber os anos que tem. Tenho um processo de acusação que não cabe num CD, e não possuo gravador de CD. Ou trabalho em casa com as minhas coisas pessoais, ou não consigo trabalhar. Recentemente, pedi que me arranjassem um gravador de CD e foi negado por falta de verba (aproximadamente 60 euros). Portanto, nem sequer é necessário um choque tecnológico, basta que se vá actualizando. Sabemos que as coisas não se conseguem fazer de um dia para o outro. Acredito que existe o mínimo para se trabalhar. Comparativamente com o que seria desejável, é evidente que ficamos um bocado afastados. Mas, também penso que não é por aí que se podem assacar responsabilidades aos atrasos. Seria injusto...
Apesar de tudo, os tribunais vão funcionando!
Acho importante que, antes de se mexer num tribunal, seja na sua estrutura ou no funcionamento, se tente perceber como funciona no terreno. Depois de se auscultar as pessoas e de se perceber as várias vertentes, nomeadamente a carolice dos que lá trabalham se percebe o funcionamento de um tribunal. E por isso é que a questão das férias é um mito e, na prática, vai dar à mesma coisa. Não se ganha nada com isso, antes pelo contrário. Em grande parte dos sítios, as pessoas cumprem horários, o que não acontecia connosco. Os funcionários saíam das salas de audiência, muitas vezes, às nove e meia, dez da noite, como sucedeu também comigo. E tal não acontece actualmente, ao menos em grande parte dos tribunais.
Já consegue chegar a casa e desligar-se dos processos?
Actualmente, por regra, não trabalho fora do meu horário. Posso é sair mais cedo e ir trabalhar para casa. As pessoas não perderam o sentido de responsabilidade e é impossível, nesta matéria, desligarmo-nos disso. Mesmo quando não estamos a trabalhar, sabemos o que temos para fazer e o que está em curso. Mesmo que não se esteja directamente debruçado sobre um processo ou uma sentença é impossível desligarmo-nos das coisas.
Sobretudo, porque estão em causa pessoas...
Não querendo prejudicar as pessoas, tentamos racionalizar os nossos horários. Esta posição foi deliberada e está a ser seguida. A agenda de um tribunal é muito difícil de se gerir. Tentamos perceber um processo concreto, mediante o grau de dificuldade e sua demora previsível. E, por regra, aproximamo-nos dessa realidade. Só que, às vezes, uma coisa que parece mais simples acaba por se complicar e demora muito mais.Portanto, há algum cuidado no tratamento das situações...!
Claro, muito embora possa haver uma margem de erro nessa abordagem. Quando está um processo em curso, tentamos, na medida do possível, marcar o número de pessoas que podem ser ouvidas. E quando não se consegue ouvir todas há que explicar o porquê. O importante é estarmos presentes para que as pessoas não digam que não se trabalha. Em muitos desses casos, sou eu, pessoalmente, quem explica a situação às pessoas, chamando-as ao gabinete ou à sala de audiências e, se for caso disso, até negoceio a agenda para a marcação do novo dia. Se mostrarmos às pessoas que trabalhamos e se estas forem bem tratadas, mesmo que não gostem da solução do processo, apercebem-se de que há um equilíbrio nas coisas. Penso que a imagem da justiça passa muito mais por cada utilizador individual do que pelo conjunto. Se as coisas correrem bem temos um mensageiro a favor dos tribunais. Mas, se correr mal...
Enfim, podemos afirmar, de certa forma, que a justiça está a ser alvo de injustiças por parte da opinião pública, quando se pega em alguns casos mediáticos que não correm tão bem para se transformarem na regra do funcionamento dos tribunais.No artigo que escrevi na última edição do JUSTIÇA & CIDADANIA está lá o que penso exactamente. Primeiro, temos que entender que a abertura ao exterior pode ser a melhor forma de mostrar os tribunais na perspectiva do seu funcionamento. Se as pessoas assistem a um julgamento, ouvem o que é dito e a conclusão do processo tem a ver com o que se passou nas sessões, independentemente das conclusões, é mostrado que a justiça funciona.Então, apesar de todas as dificuldades que lhe são inerentes, por exemplo a nível logístico ou de verbas, é injusto dizer que a justiça em Portugal funciona mal...
Dizer-se que a justiça funciona mal, assim sem mais nem menos, é injusto. Penso que 80 a 90 por cento das coisas funcionam normalmente. Claro que, tendo quatro mil processos e uma só agenda, não posso marcar julgamentos a três meses. Aí, provavelmente, é que tem de se procurar melhorar. Dentro da média exigível, é injusto dizer que funciona mal, porque o «grosso da coluna dava (não sei se ainda dá) o litro».
As pessoas estão descontentes?Neste momento, ao que julgo saber, a maior parte dos «agentes judiciários» trabalha menos que antes. Por regra, levavam-se processos para casa, incluindo os funcionários e trabalhava-se também ao fim-de-semana. Recordo-me até do caso de uma funcionária que andava no seu próprio carro, de manhã à noite, ao fim-de-semana, para notificar pessoas, o que não conseguia durante a semana, uma vez que as pessoas saíam para trabalhar. Era a tal carolice que fazia as coisas funcionar. Contudo, agora, não se pode falar em mau funcionamento, porque penso que a maior parte das situações são bem decididas. As decisões finais têm de assentar em regras e acontece que num julgamento mediático fazem-se dois julgamentos paralelos: um sem regras processuais, que é o da Comunicação Social, e outro com aquelas impostas regras. Como se sabe, as decisões são feitas por convicção, pois, por via de regra, temos o princípio da livre apreciação da prova (só a prova técnica ou pericial é que é vinculativa, em tese). Isto significa que em algumas situações estou a absolver alguém por razões de técnica processual, estando, no fundo, perfeitamente convencido de que aquela pessoa não é inocente. Mas, como não tenho provas, que possam ser valoradas, para lá chegar, tenho de decidir em conformidade com isso.
Quer dar um exemplo concreto?
Há uns cinco anos, duas prostitutas travaram-se de razões uma noite junto ao Bolhão e uma deu umas facadas na outra que, por via disso, acabou por falecer. A arguida foi ouvida na Polícia Judiciária e confessou o que se tinha passado, mas, no dia seguinte, quando foi presente no Tribunal de Instrução Criminal, deu o dito por não dito. Indiciariamente havia uma primeira confissão. Mas como não prestou declarações em julgamento, e não havia outra prova, a senhora foi absolvida. È que só podemos confrontar o arguido com declarações anteriores, e observados que sejam certos requisitos, se este falar em julgamento, senão não o podemos fazer. Agora, como vou explicar às pessoas que, por hipótese, num dado caso ouviram um excerto da confissão de um dado arguido, no noticiário das oito (o que é questionável), o facto de mais tarde o ter absolvido? Claro que isto cria uma ideia negativa da justiça que não temos hipótese de contrariar.
O que pode ser feito para mudar esta situação?
Defendo que em situações que o interesse público justifique devia existir um gabinete de imprensa que fornecesse informações correctas, actuais e indesmentíveis. Era a melhor forma de divulgar resultados com interesse, mas tratados com objectividade. Isto permitia que as pessoas sem relação próxima com as regras processuais entendessem as nossas posições. Somos pessoas e temos as nossas angústias e não é fácil mostrar resultados. Temos de ter noção que uma decisão sobre uma coisa de interesse (do) público de certa envergadura pressiona as pessoas. Mas não nos podemos deixar pressionar nos dois sentidos, só pelo facto de se tratar de assunto mediático. Ou seja, o impacto negativo de uma decisão, mas que tecnicamente é justa e única possível, não pode pesar para se «forçar» a orientação dessa decisão. Mas, o contrário também é verdadeiro. Não podemos prejudicar (nem beneficiar, obviamente) alguém só porque é uma figura pública, mediática. Enfim, a justiça vai-se fazendo por muita coisa que não se vê e só se apercebe disso quem por lá anda. Mas também já se chegaram a passar situações comigo em que a notícia no dia seguinte nada tinha a ver com o sucedido no tribunal...
Apesar da sessão ter sido pública?Sim. Às vezes uma meia frase não diz tudo. Por isso, é importante falar com os jornalistas e explicar-lhes para não haver erros de interpretação ou de má percepção por ignorância dos assuntos.Em termos de opinião pública, a morosidade da justiça é uma das causas que contribui para a crise do sector. Será que decisão de reduzir as férias judiciais apenas para um mês vai contribuir para contrariar esta situação?
A redução das férias judiciais não vai resolver muito, porque a forma como este processo foi conduzido, acentuo a forma e não a redução em si, resolveu negativamente. Aliás, tenho a sensação que agora ainda vou ter mais férias que antes. Temos direito a 27 dias úteis de férias. Antes, cheguei a ler sentenças a 31 de Julho e tive de estar 15 dias em casa a trabalhar 16 horas diárias para preparar o acórdão. Nos princípios de Setembro, vínhamos buscar trabalho ao tribunal, ou aqui ficando para resolver as situações. Portanto, onde havia atrasos, as coisas mais complicadas eram feitas nesta altura. Claro que, hoje, as coisas são capazes de não se passarem assim e, só isto, é uma perda que não tem medida. Portanto, não se trabalhar nas férias é uma perda irrecuperável. Por outro lado, cumprir os horários, em termos de agenda, vai implicar que já daqui a um ano haja tribunais que vão ficar com atrasos irrecuperáveis.
O panorama parece então complicado!
Há pouco tempo trabalhei em Famalicão e já havia julgamentos agendados para todo o ano de 2007. Se os colegas estiverem a cumprir horário, vão seguramente marcar, a curto prazo, audiências para 2009. E isto não se recupera, nunca mais. Por outro lado, o mecanismo das férias, considerando o número de dias a que cada pessoa tem direito, não é praticável. Fizemos mapas e houve que fazer algumas cedências, caso contrário não era possível organizá-los. Isto porque não perdemos o sentido de responsabilidade e temos de perceber quem somos e o que se espera de nós. Não podemos, só porque não gostamos de algumas coisas, ter atitudes revanchistas. Temos de ser prudentes, responsáveis e assumir as coisas, independentemente de certas situações que nos sejam mais desfavoráveis. Mas, por causa dos turnos, e porque esta medida foi imposta sem conversações anteriores – situação que os juízes não gostaram e disso deram contra através da sua estrutura sindical –, ninguém abdica dos 22 dias úteis seguidos. No caso deste tribunal, quem estiver de turno nas duas primeiras semanas de Agosto terá de prolongar as férias por Setembro dentro, para cumprir os 22 dias úteis. Portanto, a redução das férias judiciais não resolve nada. Ao invés, acabou com os insubstituíveis benefícios da referida «carolice». Mas, para a opinião pública, esta situação não é mais do que uma reacção à perda de determinados privilégios...
As pessoas que não conhecem os tribunais, certamente. De resto, há uma 8falsa) imagem de que no Estado não se trabalha e ninguém é responsável por nada. De resto, esta imagem foi recentemente deixada no ar por pessoas com responsabilidades políticas. E as pessoas têm de acreditar em quem está «por cima», na sociedade. Portanto, contando com a imagem que se passa e com o hábito que as pessoas têm de normalmente tentar equiparar-se, é fácil sustentar uma opinião pública desfavorável. Lamentável é que as pessoas, em vez de tentarem reclamar e lutar pela obtenção das mesmas regalias, ou equiparadas, pelo menos, se contentem em criticar, limitando-se a reclamar o fim dos direitos legais dos outros, sem que isso nada lhes resolva ou as beneficie. Esta é um bocado a nossa mentalidade em termos gerais.
Sendo os magistrados parte integrante dos órgãos de soberania, é legítimo que recorram a formas de luta como a greve?
Somos titulares de órgãos de soberania, mas não somos órgãos de soberania. E temos um estatuto de acordo com isso e as responsabilidades são as que daí decorrem. Parece existir muitos poderes e privilégios, mas trata-se de uma tarefa árdua, com maior penosidade do que benefícios. Nesta matéria devemos lutar por condições melhores, mas em tudo o que fazemos devemos ter bom senso. É um ponto principal para qualquer magistrado. Temos de ter bom senso no comportamento, nas nossas opiniões. É uma solução para tudo, mas também explica as coisas. Somos titulares dos órgãos de soberania e exercemos o poder em nome do povo à luz da Constituição. Portanto, indirectamente, representamos o povo. Em relação aos outros poderes, a diferença assenta no facto de não sermos eleitos e termos uma carreira que em muitos aspectos é equiparada à dos funcionários. Não temos autonomia financeira, apenas alguma administrativa. No fundo, somos uma espécie de «assalariados», não somos patrões de nós próprios. E, se ainda assim, não podemos lutar, quem o fará por nós???
Mas, concorda?
Temos que pensar o que a sociedade pensa de nós e deve haver equilíbrio e bom senso. O importante é que na conversa pública sobre este assunto divergimos mais para outros aspectos sobre a legalidade, ou não, da greve, e não passou, em termos de impacto, aquilo que devia estar na primeira linha – a verdadeira razão da «luta» (v.g., a questão dos serviços sociais, a questão da progressão na carreira, etc...). As pessoas contentaram-se com a imagem que passou, a de que afinal se fazemos greve qualquer dia o Presidente da República também faz. E os problemas principais ficaram (nalguns casos, convenientemente) atrás da cortina. Aliás, para mim, uma coisa que deveria ter-se ponderado era o «boicote» das autárquicas. Mas, lá está, começando a temperar aquilo que se espera de nós, e havendo um certo equilíbrio, tivemos de repensar isso. E ainda bem que não foi nesse sentido...
Polémica também a questão do congelamento das carreiras, que vai levar o Estado ao banco dos réus do Tribunal Europeu. Esta era uma das reivindicações dos juízes e está a passar agora divorciada da greve que existiu.
Isto mexe com os colegas que têm a primeira nomeação e vão trabalhar como os outros, mas ganham como auditores de justiça durante mais algum tempo. Somos equiparados à função pública, embora com alguns limites, que em certos aspectos, já eram negativos, como por exemplo o da idade da reforma dos magistrados judiciais, que estava nos 70 anos.
Mudando de assunto, o problema dos métodos processuais num julgamento, nomeadamente os recursos, não contribuem também para a morosidade da justiça?
Acho que vivemos acima das nossas possibilidades em termos legislativos. A seguir ao 25 de Abril, naturalmente que houve mutações várias na legislação. As coisas vão mudando e as leis têm que se ir adequando à realidade, procurando acompanhá-la, o que não é fácil, dado que as leis, às vezes, andam um bocado atrás da realidade. O que se passa é que se calhar temos a Constituição mais garantística de toda a Europa (se não for a única há-de ser uma das únicas) e depois temos legislação para enquadrar nestas premissas. Entendo que se devem dar garantias, mas há fórmulas de evitar possibilidades excessivas de se dilatar uma decisão. Com pequenas alterações processuais podemos evitar esta situação.
Conclui-se então que os recursos, muitas vezes, são o motivo impeditivo de se fazer justiça...
Não diria isso... mas penso que nalguns casos bastava mudar alguma coisa em termos de efeito dos recursos, entre outros aspectos. De resto, nem sempre os recursos resultam em benefício. Imagine-se um detido há dois anos e condenado em quatro com a perspectiva de liberdade condicional a meio da pena. Se tiver um recurso pendente e este demorar um bocado, certamente que acaba por desistir dele. Ou seja, o efeito útil que possa vir desse recurso vai acabar por lhe ser prejudicial.
Ainda no caso da morosidade da justiça, acha que as alterações anunciadas quanto à possibilidade de determinadas penas serem negociadas fora dos tribunais também vão ajudar a resolver esta questão?
Já temos uma figura no Código de Processo Penal, que é o artigo 281, onde se prevê a hipótese de negociação. «Se o crime for punível com uma pena de prisão não superior a cinco anos pode o Ministério Público decidir, com a concordância do juiz de instrução, pela suspensão do processo...». Acontece que este artigo é aplicado muito poucas vezes, embora já esteja previsto na legislação desde 1989. Portanto, o que aparenta ser uma novidade já existia, embora não saiba as concretas razões pelas quais esta fórmula não é usada como devia ser. Esta nova proposta de negociar a pena pode trazer algumas novidades, tudo dependendo dos casos em que tal possa suceder e se previr menos restrições à sua aplicação, o que ignoro. A título de exemplo, não sei se vai ser possível negociar a pena se o arguido já tiver antecedentes criminais. Tudo dependerá, portanto, da maior ou menor abrangência do modelo em causa.
Enfim, pode considerar-se a justiça um suspense constante, já que há que ter sempre em consideração os vários interesses das várias partes?
Esse aspecto é uma abordagem mais sociológica e empírica das coisas. Mas, a justiça não pode estar preocupada com isto...
Mas preocupa-se o cidadão...!
Temos que racionalizar sempre que possível aquilo que temos para fazer. Não podemos entrar em pânico, dizendo que estamos a afundar. Temos de perceber o que está em cima da mesa. Portanto, quanto mais pressionante for o volume de serviço, menos tempo há para pensar noutras situações. A filosofia de quem anda nos tribunais é a de tentar racionalizar ao máximo cada dia que passa e, se possível, cada vez com menos atraso...
E quanto às penas alternativas? Será que estas vão aliviar a sobrelotação das prisões?
Tenho algumas dúvidas. Uma indicação genérica, por vezes, não chega ao fundo das questões. O princípio pode estar certo, mas a forma como é regulamentado pode ser restritiva. O nosso Código Penal data de 1982, mas começou a ser escrito dezanove anos antes, pelo professor Eduardo Correia, que o considerava como o seu filho mais novo. Quando entrou em vigor, algumas das medidas, nomeadamente o trabalho a favor da comunidade e mais algumas medidas chamadas de flexibilização das penas, que eram, digamos assim, o cordão umbilical do projecto, estavam a ser abandonadas na Alemanha. Por isso, muitas vezes vamos buscar modelos que não têm nada a ver com a nossa realidade e, por isso, não se adequam e fracassam. Veja-se, por exemplo, o caso da contumácia, igualmente «importada». Só agora, ao fim destes anos todos, é que começa a dar alguns resultados. Durante muitos anos, o contumaz podia tirar o BI, certidões e passaportes. Ou seja, a sua eficácia era nula.
Mas, chegou a aplicar este tipo de penas?
Das poucas vezes que apliquei o trabalho em favor da comunidade tomei em consideração as dificuldades de solução no terreno. De facto, não basta fazer uma sentença muito bonita, se não tiver condições para a fazer cumprir. A título de exemplo, recordo que, sobretudo na área dos menores, tínhamos de mendigar uma solução, se quiséssemos resolver o problema, o que muitas vezes passava por conhecimentos pessoais com alguém ligado à instituição A ou B. E só por isso se ia conseguindo tornar a decisão eficaz ou, mais do que isso, resolver aquela concreta situação, normalmente delicadas. Tal sucedeu comigo diversas vezes. Senão, tinha uma sentença sem solução à vista.
E quanto às pulseiras electrónicas?
É uma solução que me desperta algumas dúvidas. Se analisarmos o número de presos e os crimes que estão envolvidos, se calhar temos um índice muito elevado de tráfico de droga ou de furtos. Mas, também temos consumos associados a tudo isto. Se o espectro for este, a pulseira electrónica não vai resolver nada, porque o detido vai continuar a consumir ou a vender droga no bairro. Portanto, pode ser uma solução para reduzir as estatísticas, mas em termos de recuperação tenho grandes reservas. Penso que a pulseira electrónica devia ter algumas restrições mesmo nos preventivos, relativamente ao tipo de crime e à moldura da pena. Enfim, é uma situação complicada. Se a pulseira tem as suas vantagens, penso que não deve ser alargada a todas as situações.
Para terminar, quais as três questões que gostaria de colocar ao ministro da Justiça?
Não tenho nenhuma questão para colocar ao ministro da Justiça, porque entendo que não devo questionar qualquer outro titular de um órgão de soberania. Posso apenas comentar, face às propaladas novidades legislativas, que desconheço o projecto, nem que seja genericamente. O que, obviamente, sem saber quais as perspectivas concretas, me impede de dar a minha opinião sobre a sua bondade, ou não. Permito-me acrescentar apenas que, até agora, o pouco que se mexeu no funcionamento dos tribunais, é fácil de perceber, não agradou aos magistrados judiciais.
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