Um número: no ano passado, as cadeias portuguesas libertaram 5880 reclusos. Quantos destes reincidiram no crime? Nenhuma resposta. Em Portugal, ao contrário do que acontece em Espanha, na Alemanha ou no Reino Unido, não há estudos sobre a reincidência.
Os especialistas reconhecem que nem prisões nem tribunais ajudam os ex-presidiários a enterrar o passado. Mas há uma janela de esperança aberta pelas alterações ao Código Penal prometidas para o início de 2007.
"Quando saí da prisão, vinha com a roupa do corpo e de bolsos vazios. Estava habituado a uma rotina, que não era rotina, era tédio, e depois levei outra vez com a realidade das pessoas a olharem-me de lado. Se não fosse o apoio da família, não tinha conseguido" (Sérgio Leal, de 31 anos, ex-recluso com três anos e oito meses de pena cumprida).
A promessa de liberdade é uma frincha pela qual respiram todos os condenados que cumprem pena de prisão efectiva. Só no ano passado, as cadeias portuguesas libertaram 5880 detidos. Mas quantos destes conseguiram reintegrar-se e quantos voltaram para a cadeia é algo que ninguém arrisca avançar. "Era fundamental que se fizesse esse estudo sobre a taxa de reincidência que permitisse avaliar e corrigir as políticas de reinserção social que têm vindo a ser seguidas", aconselha Conceição Gomes, directora executiva do Observatório Permanente de Justiça (OBJ).
"Fui libertado no dia 13 de Maio de 2002 e andei, como se costuma dizer, à deriva durante dois anos. Tinha perdido a companheira e a filha, mas tinha-me mentalizado que não podia voltar à vida do crime, nem que tivesse que passar fome. Cá foram olhavam-me sempre com desconfiança, ainda olham. Depois, lá fui arranjando uns biscates. Em Paços de Ferreira, vi muitos a voltar menos de um mês depois de terem saído" (Abel Maia, de 54 anos, cumpriu seis anos, nove meses e 11 dias de prisão, por assaltos à mão armada).
"A experiência diz-me que há uma percentagem elevada de indivíduos reincidentes, que voltam ao crime e que voltam à prisão, mas efectivamente não temos nenhum levantamento sobre isso", confirma Fernando Mariz, director do departamento de coordenação e apoio técnico da Delegação Regional do Norte do Instituto de Reinserção Social (IRS). Em Espanha, que detinha em Outubro 16.800 reclusos, a taxa de reincidência varia entre os 37 e os 70 por cento, de acordo com os crimes cometidos. Em Portugal, o Estado, que gasta uma média de 40 euros/dia por cada recluso (e eram 12.846, no passado dia 16), continua sem saber até que ponto o sistema prisional cumpre um dos seus pressupostos, ou seja, "a ressocialização do condenado, como meio de evitar a reincidência e desse modo proteger a sociedade dos agentes do crime", conforme se lê no estudo A Reinserção Social do Recluso - Um contributo para o debate sobre a reforma do sistema prisional, elaborado em 2003 a pedido do Ministério da Justiça, então tutelado por Celeste Cardona, mas que acabou por cair no esquecimento.
Enquanto isso, no período pós-prisional, os técnicos do IRS socorrem-se dos instrumentos legais existentes para quebrar os muros que separam o ex-recluso do resto dos mortais. "O IRS pode acompanhar o ex-recluso durante um período máximo de cinco anos, fornecendo apoio psicossocial. Quando saem em liberdade definitiva, é muito mais complexo, porque nenhuma instituição pode intervir. E, se não houve lugar a condicional, é porque muitas coisas falharam: o recluso não tinha retaguarda familiar, emprego, logo, fica à beira de reincidir", explica Fernando Mariz.
"A última vez que saí foi em "condicional". E quem me ajudou não foi a cadeia nem as assistentes, foi o meu pensar. Vinha limpo, mas, sem medicação, não conseguia trabalhar, tinha resfriados e calores e precisava de repouso. A minha mãe... eu também tinha o meu orgulho e ela já não acreditava em mim. Fiquei a dormir numa carrinha (Júlio Rocha, de 34 anos, cumpriu quatro anos). Os juízes continuam - contra as recomendações do Conselho da Europa e do praticado em países como o Reino Unido, conforme aponta o referido estudo - a dar pouca relevância à aplicação de penas substitutivas da prisão efectiva, em particular à prestação de trabalho a favor da comunidade. "A grande vantagem do trabalho a favor da comunidade é que põe os condenados a cumprir pena em favorecimento da própria comunidade contra a qual cometeram o crime. E torna muito mais fácil à sociedade olhar os seus infractores como indivíduos capazes de se reinserir", defende Fernando Mariz.
Sendo assim, por que razão é que, em 2004 por exemplo, os tribunais aplicaram a pena de trabalho comunitário a apenas 202 condenados, de um universo de 69.294? "Por causa de bloqueios do ponto de vista normativo e legal que dificultam a aplicação de algumas sanções. E, por outro lado, a pena de trabalho, que nalguns países tem uma taxa muito elevada, obriga o sistema judicial a articular-se com o IRS, as câmaras e outras instituições comunitárias, coisa que a quantidade de trabalho e a cultura burocrática dos tribunais não permite", responde Conceição Gomes, para quem urge apostar na formação dos próprios juízes nesse sentido.
Assim, e enquanto não avança a reforma do Código Penal, que aposta fortemente nas alternativas à prisão (ver texto nestas páginas), os tribunais continuam a mandar arguidos para as cadeias. E, dentro destas, a realidade continua a ser manchada pela omnipresença dos baldes sanitários e pelos problemas associados à toxicodependência. "Hoje em dia as cadeias é à base de droga. e não me digam que a droga entra só pelas visitas, porque ninguém anda cego neste mundo. É pelos guardas? Tem de ser. Eu vi a PJ a entrar para fazer rusgas por causa dos guardas. E também via como o meu irmão, mal acabava a visita, se desfazia de tudo para comprar droga. a minha mãe levava-lhe dinheiro e roupas e ele vendia tudo para comprar droga" (Moisés de Jesus, 26 anos, cumpriu cinco anos e seis meses).
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