Das mudanças que se avizinham no Código de Processo Penal uma outra há que comporta riscos que deverão ser acautelados. Até aqui, e como é lógico e natural, sempre que uma queixa anónima era operada contra alguém, ou salientando certa situação envolvendo uma qualquer ilicitude, tinha automaticamente lugar a abertura de um inquérito, que poderia conduzir, ou não, a um processo.
É natural que assim seja, se outros meios não existirem para confirmar, ou infirmar, a notícia: se o Serviço Nacional de Bombeiros e Protecção Civil, ou o INEM, receberem um pedido de socorro, é natural que acorram, apesar da grande percentagem de falsos alarmes. E o mesmo terá sempre de ter lugar, mormente nos dias que correm, se ocorrer uma denúncia de explosivo num qualquer lugar, ou se um objecto estranho estiver colocado onde não seria de esperar.
Ora, há mudanças no modo como, no futuro, as queixas anónimas virão a ser tratadas. Tanto quanto se sabe hoje, a denúncia poderá não dar origem a qualquer inquérito se quem tiver de decidir achar que a mesma é manifestamente infundamentada!Há já alguns meses, Rui Pereira, que dirigiu a Unidade de Missão para a Reforma Penal, explicou esta mudança com um exemplo que não foi feliz, mas que mostra bem como é difícil justificar uma tal mudança. Nesse programa, Rui Pereira deu o exemplo de uma queixa anónima onde alguém contasse que vira o Presidente da República a passar junto de uma dependência da Caixa Geral de Depósitos, assim concluindo que aquele se preparava para assaltar a referida dependência!!!
Acontece que tive a oportunidade de participar nesse programa, tendo salientado que o exemplo era muito pouco feliz, e mostrando o risco que se corre com o novo método: ele confere ao decisor um completo poder discricionário, desconhecido do domínio público, porventura de mais ninguém, sendo, por isso, insusceptível de poder ser sancionado, por exemplo, por ter a decisão sido manifestamente inapropriada...
A título de exemplo, nesse mesmo programa, coloquei o seguinte cenário: em certa noite de domingo o Presidente da República – o Presidente João Pedro – chegava a casa no carro de um amigo e na companhia de um terceiro. Em certa rua, a dois quarteirões de sua casa, o amigo, já com uma taxa de alccolemia acima do legalmente permitido, tinha um despiste, embatendo numa outra viatura estacionada, arrancando de imediato.A certa instância, a cena era observada por um casal de namorados, que identificava o Presidente João Pedro no banco de trás. Determinavam-se, então, a enviar ao Procurador-Geral da República uma carta anónima, narrando o que haviam visto. Bom, com o novo diploma nada impede que o Procurador-Geral da República, ou a entidade a quem a queixa anónima tenha sido enviada, decida que a mesma é manifestamente infundamentada.
Trata-se de uma mudança que envolve o risco que se refere atrás, ou seja, o de tal mecanismo poder ser usado de um modo discricionário e, por isso mesmo, completamente incontrolável. Fica aberta, deste modo, uma potencial porta para que, quem quer que receba a referida queixa anónima, possa sempre dizer: tive a plena sensação de que tal queixa era destituída de um mínimo fundamento.
Há um princípio essencial quando se procede à elaboração de novos diplomas, nomeadamente em matéria penal: limitar o poder arbitrário nas decisões, ou seja, o completo antónimo desta mudança que Rui Pereira explicou nesse programa. E há que ter em conta a realidade social vivida, que no caso português é de uma extrema corrupção, de há muito por todos percebida, mas também e até há pouco votada a um silêncio profundo pela classe política. E que este cenário tem lugar, precisamente, num Estado onde as tradições democráticas e de respeito pela lei, há décadas estão extremamente ausentes.
Depois do pânico que se viveu em torno do caso Casa Pia, em especial ao nível político – e não só –, esta mudança antes referida não pode deixar de suscitar as mais naturais e profundas apreensões.
In Diário XXI
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