Com prudência quiçá excessiva, surgem, também por juízes, as primeiras análises, ainda necessariamente superficiais, ao Pacto para a Justiça, subscrito pelos dois maiores partidos políticos portugueses.
Devo dizer que, genericamente, entendo que as medidas propugnadas apontam no sentido positivo, indiciando soluções que há muito se perfilam como adequadas e de implementação urgente.
É certo, porém, que o unanimismo que decorre de um acordo entre duas facções que representam mais de setenta e cinco por cento do eleitorado prejudica um debate crítico sobre a bondade do que se propõe e convida à acéfala aceitação do que provém de uma imensa maioria.
O habitual circo mediático devidamente encenado, a par de uma comunicação social que logo adoptou o pacto como seu, prejudica também a reflexão crítica, sendo os defeitos que se apontem logo desvalorizados e imputados a “tiques” corporativistas de alguns “velhos de Restelo”, avessos a mudanças.
Mas, “et pour cause”, essa reflexão lúcida e serena é ainda mais necessária, tanto mais que importa apontar caminhos que alertem para soluções ditadas mais pela necessidade de confronto e ruptura do que pela sua sagacidade.
Na Justiça, entrecruzam-se poderes diversos, nem todos provindos do poder político, e seria pura estultícia pretender encetar reformas sem auscultar aqueles que as podem protagonizar.
Assim, começando pelos defeitos, diria, desde logo, que desagrada a metodologia encontrada.
Como já se escreveu aqui em baixo, percebe-se mal como a instituição parlamentar é condensada em dois representantes únicos que a vinculam com duas assinaturas.
Depois, quanto à substância, é manifesta a continuada ausência de um conceito estratégico para a Justiça.
Falta harmonia sistemática no que se propõe mas, sobretudo, percebe-se a o carácter retalhado e fragmentário do que se decidiu, tributário de uma negociação parcelar e sem uma visão de conjunto, que é essencial.
Daí que surjam propostas puramente de detalhe, como o número de horas de duração de um interrogatório judicial, a par de outras como as relativas à modificação do estatuto de jubilação que, como também já se disse, nada têm a ver com a reforma da justiça e parecem entroncar apenas numa saga persecutória contra direitos sócio-profissionais das magistraturas.
Lamenta-se ainda, a par das três ressalvas apontadas oportunamente pela Associação de Juízes, a ausência de uma proposta consistente e concreta para a reforma da acção executiva, principal factor de congestionamento dos tribunais, ou o carácter timorato das soluções para a simplificação processual, não assumindo novos paradigmas nas nossas leis processuais.
Critique-se ainda a adopção de um irracional sistema de quotas no acesso ao Supremo Tribunal, impedindo objectivamente o acesso dos juízes à promoção na carreira, em beneficio dessa inefável classe emergente e que nasce já com dúbios privilégios, a classe dos “juristas de mérito”.
Para já, segundo o pacto, esta classe dos “juristas de mérito” verdadeiramente protegida pelo sistema tem apenas uma característica conhecida: não pode albergar, no seu abençoado seio, magistrados.
Será caso para proclamar “Vade Retro, Satanás!”.
Finalmente, registe-se ainda, como foi já ventilado, a indefinição de uma verdadeira politica criminal, a necessitar de delimitação em lei quadro, e a ausência de uma assunção de responsabilidades concretamente definidas no combate resoluto à corrupção.
Esta é uma matéria decisiva no quadro do Estado de Direito e não devia ter sido esquecida.
A crédito, perfilam-se, contudo, itens preciosos.
A saber, sem demasiada exaustividade, desde logo, o reconhecimento do papel fulcral do Conselho Superior da Magistratura, afirmando a sua autonomia e assumindo o compromisso de o dotar dos meios que permitam torná-lo realmente actuante como eixo central do sistema judiciário.
A racionalização do sistema de recursos, sabendo nós que a sua proliferação “ad nauseam” é um forte entrave à realização da Justiça particularmente no que concerne aos processos envolvendo os denominados poderosos. A par disso, o esforço de dignificação do Supremo Tribunal de Justiça através do condicionamento dos recursos a apreciar por este.
A introdução da ideia de gestão no funcionamento dos tribunais, com a adopção de mecanismos que estimulem a produtividade e a eficácia.
A separação na formação entre as magistraturas judicial e do Ministério Público, assumindo a diversidade imensa das respectivas funções.
A reforma do “segredo de justiça”, não optando pela solução fácil de dele isentar os jornalistas.
A criação do regime de mediação no processo penal.
Como apontamento final, importa sublinhar a necessidade de uma intervenção enérgica e fundamentada por parte dos agentes de justiça, muito em particular dos juízes, designadamente através da sua Associação, na fase decisiva que se inicia relativa à concretização, em letra de lei, das linhas de força deste Pacto.
O carácter, por vezes excessivamente vago e impreciso, do Pacto, que até se compreende, mais nos remete para a importância do momento da sua concretização.
Saibamos nós, particularmente aqueles que podem institucionalmente fazer ouvir a sua voz, em cada momento, apontar publicamente as orientações que melhor defendam a eficácia do sistema, visando sempre melhor servir os cidadãos.
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