O pungente editorial do Público de hoje, assinado por Manuel Carvalho, é vistoso pelo seu significado patente e ainda mais pelo que fica escrito em entrelinhas que todos podem ler.A propósito do caso Apito Dourado, o Público tem glosado o conteúdo das escutas telefónicas gravadas a arguidos no processo e transcritas profusamente na comunicação social.
Há uma tónica nessas conversas gravadas entre dirigentes de clubes de futebol e o editorialista do Público disso dá conta: expõem “com crueza a facilidade com que em Portugal se podem tolerar durante anos tantos comportamentos torpes e tantas personalidades cujo mérito exclusivo é o dom para a mentira, para o favor deletério ou para a construção de redes de interesses e tráfico de influências.”
O editorialista põe-nos a todos as barbas de molho para as consequências previsíveis do processo-crime propriamente dito: “um eventual desrespeito pela Constituição, um erro processual ou a falta de senso dos magistrados” condenará o processo ao arquivo.
Já se vislumbra, aliás, tal destino, sabendo como se sabe que o diploma sobre corrupção desportiva, foi aprovado pelo Governo da época, em condições de constitucionalidade pelo menos discutível e que o pode vir a tornar inapelavelmente inconstitucional. A propósito deste fenémeno recorrente ( aconteceu o mesmo com a legislação de contrabando há mais de dez anos), há já quem defenda que o problema radica na própria lei fundamental…
Contudo, para se chegar a este consenso virtual, explícito no editorial do Público, o que é que foi preciso?
Apenas a revelação de umas tantas escutas telefónicas a arguidos da bola, excelentíssimos. Suspeitas já as havia, reveladas todas as semanas pelos que perdiam os jogos. A revelação do conteúdo das escutas, contudo, torna-se hilariante e ao mesmo tempo exemplar da dificuldade em se atingir o cerne da autêntica corrupção que grassa, larvar mas em modo galopante, na sociedade portuguesa.
Os exemplos apontados relativamente aos comportamentos de alguns dirigentes desportivos, são quase ridículos e passam quase todos pelo pequeno jeito; pelo pequeno toque e pelo pequeno interesse numa promoção ou numa despromoção; num emprego camarário para funcionários de menor qualificação ou em empregos no Estado para alguns de maior qualidade; numa autorização de construção ilegal; num ajustamento de declarações comprometedoras. Enfim, num arranjo de porreirismos vários entre pessoas de bem e que muito bem se dão.
Que não haja qualquer dúvida, porque me parece que se deve distinguir trigo e joio: esta evidência esmagadora de comportamentos de favor indevido ou meio devido, de cunha instituída como padrão de comportamento, constitui neste momento , (ou sempre constituiu) , na sociedade portuguesa, um modo generalizado de ser português. Não é novo; não é desconhecido de ninguém e não parece ter excepções. Há uns anos, até o governante Cavaco Silva falava publicamente das "cunhas" que lhe chegavam para a nomeação da secretária-geral da Assembleia da República, cargo apetecido pela remuneração generosa. Nenhum dirigente partidário desconhece este fenómeno e nenhum deles, eventualmente, o denuncia como indício de corrupção grave e indesculpável ou o entenderá como inadmissível. Logo...
Espanta até como o editorialista o ignora e rasga as vestes de indignação, admirando-se com o fenómeno e traçando linhas rectas de moral calvinista em terra de costumes brandos.A par dessa actividade fervilhantemente notória de pequenos compadrios, nepotismos notórios, tráfico de influência de pequena intensidade e cumplicidades com pequenos e grandes poderes de influência, circulam os conceitos éticos, a lei criminal e os costumes morais.Quanto à lei criminal, é preciso que se diga que o tráfico de influência apenas em 1995 foi devidamente criminalizado. Antes , não tinha sequer dignidade de ilícito penal e era conceito que permitia a deputados negociarem à grande e quase em nome do Estado, com clientes de escritório particular.
A noção de fronteira clara entre o tráfico de influência, a cunha simples e directa, a corrupção explícita e a ética razoável de procedimentos, na sociedade portuguesa actual , está completamente desvirtuada e invisível.
Os apelos que ao longo dos anos se têm ouvido, vindos de vários sectores e com protagonistas conhecidos, na magistratura e até na política activa, não tem encontrado eco significativo e por vezes são pura e simplesmente desprezados como alarmismos injustificados. Num debate televisivo há muitos meses atrás, um dos advogados mais conhecidos e competentes na área do direito Fiscal, e que faz parte de uma grande sociedade de advogados ( Diogo Leite Campos, LPMJ) afirmava publicamente não conhecer qualquer caso de corrupção e desvalorizou os alarmes públicos a propósito de tal assunto. Isso, depois dos casos Melancia, Ministério da Saúde, etc. etc.
Ainda agora, João Cravinho deputado do PS e político de sempre, afirmou publicamente que “O PS deve ao país um combate à corrupção”. E uma das frentes desse combate passa pela afinação da lei penal. Os métodos de investigação mais sofisticados e eficientes são evitados e alguns proibidos sob a capa extensiva das garantias de direitos e liberdades. A distinção que ainda se continua a fazer entre corruptor activo e passivo permitiu a absolvição de arguidos conhecidos . A dificuldade na obtenção de provas concretas e processualmente válidas, decorre directamente da falta de meios materiais e humanos, nas entidades investigadoras. Os exemplos concretos de tais carências aparecem quase todos os dias nos jornais e até o director geral da PJ vai à Assembleia da República explicar o que se passa. O DCIAP, com um “exorbitante aumento do número de processos”, não tem instalações condignas; não tem condições de funcionamento razoável nem tem pessoas ou peritos suficientes. Pelo contrário, as “secretas”, segundo notícias do Público de hoje, tem tripa forra e dependem do gabinete do PM.
Assim, o empirismo e a ausência de estudos sérios, profícuos e consequentes sobre o fenómeno da corrupção em geral, permite que alguns possam alarmar a sociedade em geral e ao mesmo tempo outros os desmintam e desvalorizem, no mesmo dia e hora.Contudo, com o empirismo que as ciências sociais ainda permitem, será possível especular sobre o fenómeno geral a partir de outros mais pontuais, como é o caso das escutas no Apito.
Há uma distinção fundamental a fazer, nas leis e praxis penais: traçar uma fronteira visível entre o que é corrupção de grande coturno e que provoca a sangria nas contas nacionais que nos afectam a todos e aquela que resulta dos pequenos trapicheiros das cunhas, favores e nepotismos alargados, evidenciado nas escutas aos dirigentes do futebol.
Esta soi-disant “pequena corrupção” instalada em todas as camadas e nichos da nossa sociedade é a marca de água do grande charco denunciado por J. Cravinho ( e outros como M.J. Morgado e ainda outros como alguns sociólogos) e evidenciado ao longo dos anos pelas denúncias públicas que acabaram em absolvições e prescrições que todos conhecem e lembram. Embora seja esse o sinal distintivo da generalizada corrupção moral que sustenta todo um modo de ser português, a política criminal não pode agarrar-se apenas a conceitos de ética e moral cuja defesa compete a todos como sociedade.
A política criminal, nesta área, deve seguir as passadas do caminho apontado por Cravinho e deter-se no que se revela importante: a sindicância de concursos, obras e empreitadas públicas na administração central e local de modo efectivo e sem fazer de conta que se vêem contas, mesmo em tribunais especializados. A sindicância dos contratos de fornecimento de bens e serviços públicos. A sindicância da atribuição de dinheiros públicos a entidades diversas e a sindicância das escolhas políticas. A sindicância da riqueza individual efectiva ( não apenas a nominal) de quem beneficia de contratos com o que é do público, de todos nós portanto.Nesta tarefa sindicante, embora o direito criminal e as suas instâncias de aplicação, tenham muito campo de actuação, nem de perto nem de longe podem substituir a actuação concreta daqueles que em primeira linha a devem praticar: a comunicação social.Nota : o postal foi corrigido por causa de má informação que era dada. No que respeita aos prazos da autorização legislativa para a elaboração de legislação que afectasse a verdade desportiva, pode verificar-se o seguinte:
A lei de corrupção desportiva é o Decreto-Lei nº390/91 de 10 de Outubro e que foi visto e aprovado pelo governo de Cavaco SIlva, tendo Laborinho Lúcio e Roberto Carneiro como ministros. Tal legislação foi promulgado em 24.9.01 e publicado em 10.10.01.
Esse decreto-lei foi publicado no uso da autorização legislativa concedida pelo artº 1º da Lei 49/91 de 3 de Agosto de 1991.
Este diploma autorizou o Governo de então a legislar sobre comportamentos que afectem a verdade e a lealdade da competição desportiva e a qualificá-los como crime.
O prazo da autorização legislativa era de 90 dias. A referida lei foi aprovada em 18.6.1991 e publicada em 3.8.1991. Aparentemente, a eventual inconstitucionalidade nada tem a ver com o prazo, ao contrário do que escrevi...
O prazo de 90 dias, aparentemente expiraria em 3 de Novembro de 1991.
Ora o DL 390/91 foi publicado em 10.10 1991. Está feita a correcção, mas não fica esclarecido o motivo da eventual inconstitucionalidade aventado por Gomes Canotilho. Who knows better?!
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