Apesar da sua insignificante relevância, a verdade é que se tem mantido na ordem do dia a discussão acerca do famigerado «pacto para a justiça», firmado pelos estados-maiores dos dois maiores partidos portugueses.Não valerá evidentemente a pena verter tinta sobre o que já está mais que dito. Há contudo alguns pequenos aspectos que merecem ser sublinhados, o que para tanto invocará necessariamente algumas das ideias que vêm sendo expostas a propósito de tal polémica.
Todos estão de acordo, políticos incluídos, que há matérias sobre as quais a democracia exige consensos alargados, e «uma reforma da justiça» é seguramente uma delas. É nesse sentido que interpreto o patrocínio do Presidente da República. Acontece porém que tais consensos, numa democracia adulta, devem formar-se, com total normalidade, na casa da democracia, entre os representantes do povo.
Neste caso, como é sabido, os protagonistas escolheram outro caminho. Juntaram-se os partidos que nos têm governado (e que incessante e recorrentemente prometem a almejada reforma) e firmaram um acordo, relativo a algumas matérias do sector da justiça, nos termos do qual se obrigaram a aprovar conjuntamente, na Assembleia da República, as leis que as desenvolverão.
Para além da entorse evidente às regras relativas à sede própria dos consensos e dissentimentos políticos (que é naturalmente o parlamento), o «pactum» aparece ao público no dia 8/8/2006, em papel com timbre da Assembleia da República, eufemisticamente denominado de «acordo político-parlamentar para a reforma da justiça celebrado entre o PS e o PSD», sendo firmado pelos presidentes dos grupos parlamentares dos respectivos partidos.
Diz-se que os deputados do PS aceitaram aquilo a contra-gosto… Mas a verdade é que aceitaram. Alguns assumem, embora de modo mascarado, o democraticídio (v.g. Guilherme Silva, hoje à noite, na SIC-Notícias)
Haja quem se lembre que a divulgação pública do texto foi feita pelo Primeiro-Ministro e pelo presidente do PSD. Este congratulou-se pelo facto de passar a estar envolvido «na reforma da justiça»; aquele referiu que tudo o que ora se acordou já constava do programa do governo e que quem tudo preparou foi o Ministro da Justiça…
Curto e grosso: o Governo mandou os «seus» deputados assinarem um «acordo», nos termos do qual se obrigaram a aprovar a legislação que lhes for apresentada por aquele, quanto às matérias previstas.
Quer-me parecer que as regras da democracia foram não apenas invertidas, como foram grosseiramente subvertidas, já que a Constituição da República dispõe com total clareza que a competência para legislar sobre tais matérias é da Assembleia da República (sendo num dos casos de reserva absoluta - estatuto dos juízes), naturalmente livre de quaisquer peias ou compromissos, que não os nela firmados. E ao organizar o Estado a Constituição dispõe que é o Governo que depende da Assembleia da República, respondendo politicamente perante esta, e não o contrário.
Como se tamanha trapalhada não bastasse, olha-se para o «pactum» e nele não se vê a reforma que o país espera. Verdade se diga que, tal como já acontecia no programa do governo, está lá tudo, sem que se diga nada, e também o seu contrário.Pode tratar-se de um equívoco, mas nas linhas gerais acordadas só reflexamente se vislumbra o cidadão com os seus anseios e interesses. As «reformas do Código Penal e do Código de Processo Penal» nada de significativo trazem. Os valores preconizados para as alçadas em processo civil são manifesta e grosseiramente desajustados da realidade, por defeito. As soluções para a acção executiva são paliativas, nada resolvem (vão continuar a aumentar os juízes de execução, as secretarias de execução e os solicitadores de execução). O mapa judiciário, há muitos anos a precisar de ser revisto, ao invés de ser redimensionado vai ser pós-modernizado (desde logo na nomenclatura das circunscrições territoriais) e vai criar juízes motorizados (que ao invés de estarem no tribunal a julgar andam na estrada no caminho de um tribunal para o outro). Depois, em matéria de acesso à carreira nas magistraturas e aos tribunais superiores, bem assim como aos respectivos estatutos, o que ressalta são as questões de poder e a trave mestra parece ser a administrativização do poder judicial. Mas esta impressão pode resultar apenas da desconfiança fundada nas malfeitorias do passado recente.
Importante realmente é que o debate continue, para que se esfrie o ímpeto desastroso com que este governo entrou na área da justiça e que só tem agravado a situação. E uma vez que tal debate na Assembleia da República já não se fará, que se faça então na opinião pública.
edit post

Comments

0 Response to 'Pactum'