Os 150 advogados em funções na ilha de S. Miguel demonstram que este é um mercado que começa a ficar saturado. Face às dificuldades, nomeadamente a falta de clientes, muitos juristas optam pelo abandono da actividade.
Na ilha de S. Miguel trabalham cerca de 150 advogados para uma população de 140 mil habitantes. À primeira vista pode parece pouco, pois significa aproximadamente apenas um advogado para cerca de 930 pessoas. Mas isto só seria dramático se cada um dos habitantes necessitasse e recorresse aos serviços jurídicos dos advogados, o que se traduziria em muito trabalho para estes, sem dúvida. Porém, fazem parte da população crianças, jovens, pessoas organizadas em núcleos familiares, em grupos profissionais. Partindo desse princípio, e feitas novamente as contas, começam é a sobrar advogados. No entanto, esta é uma actividade que continua a atrair muitos jovens no País, em geral, se tivermos em conta que o número de inscrições, nos últimos anos, tem aumentado exponencialmente, de tal forma que, neste momento, existem quase tantos advogados em Portugal como, por exemplo, em França. Nos Açores, e particularmente na ilha de S. Miguel, essa atracção pela área da advocacia é bem evidente. Conforme o EXPRESSO DAS NOVE conseguiu apurar, a situação em que trabalham e vivem muitos juristas micaelenses (mais novos e mais velhos) não é, em nada, atractiva. "A sociedade que os vê entrar no tribunal, com uma toga, está completamente enganada em relação a eles", afirma o advogado Viveiros Raposo, que se mantém há 13 anos no mercado micaelense, mercê de "muito trabalho", segundo refere. As ideias defendidas por este jurista são corroboradas por um estudo apresentado no último Congresso dos Advogados Portugueses, da autoria de Nicolina Cabrita. O relatório de inquérito aos juristas assumiu mesmo que, para além do número de advogados crescer exponencialmente em Portugal (anualmente há cerca de duas mil novas inscrições na Ordem), esta classe profissional vive com muitas dificuldades. Enquanto uns saem das universidades depois de terem realizado, tanto o curso como o estágio, de forma satisfatória e até brilhante, e acabam por singrar, ou não, no meio, outros há que, ao fim de meia dúzia de anos, acabam por ter de desistir da profissão. De acordo com Viveiros Raposo, isto é só a ponta do icebergue de um problema mais profundo que ocorre na ilha de S. Miguel, mas que é comum a todas as comarcas do País. E não é de hoje. Na sua opinião "existem vários advogados, com excelentes qualidades, que infelizmente não estão a trabalhar. E quem perde com isso é mesmo a sociedade." Segundo Viveiros Raposo, para além dos que desistem da profissão, ora porque não conseguem pagar as quotas à Ordem, ora porque não têm mesmo forma de manter os seus escritórios, muitos se deparam com dificuldades financeiras graves na sua vida. Se a rama do problema tem consequências notórias na forma como vivem vários juristas, na raiz está, de acordo com o mesmo interlocutor, uma questão que dificilmente será solucionada, porque já está de tal forma enraizada na sociedade, em geral, e não só no mundo da advocacia, que leva a que muitos advogados tenham de deixar de exercer, ou acabar por se contentar com empregos na função pública ou mesmo aliar-se a outros grandes nomes da advocacia, para poderem sobreviver no mercado.
Carteira de clientes passada em herança
Viveiros Raposo argumenta que, em S. Miguel, para se fazer uma carreira, muito mais do que ser um bom profissional basta ser "filho de certas famílias, que, muitas vezes, mantêm os advogados em escritórios de fachada, só para não ficarem mal na sociedade". Além disso, acrescenta, normalmente são as próprias famílias que oferecem o património, arranjam as avenças e, quando têm tradição na área, chegam a passar toda a carteira de clientes aos filhos. "Há advogados sem protecção financeira, familiar ou pública, que estão no mercado completamente entregues à sua sorte", diz. O jurista sabe do que fala. Começou a sua carreira de forma modesta, num escritório arrendado numa rua de Ponta Delgada. Apesar de, em relação ao futuro, ter uma postura céptica, não desaconselharia quem quer que fosse a seguir a área da advocacia. "Esta profissão não é difícil. É uma profissão como qualquer outra. Eu sei que não gostam que diga isto, mas a grande maioria das pessoas é capaz de a desempenhar, desde que se esforcem muito", termina.
Profissionais obrigados a abandonar actividade
Além de haver advogados que só conseguem singrar no mercado porque têm protecção familiar, a acumulação de cargos é outro factor que não abona a favor desta actividade.
"A Ordem não pode admitir que advogados brilhantes não sejam aproveitados para a advocacia, inclusivamente para defender a sociedade." As palavras são do jurista Viveiros Raposo na defesa do direito à justiça dos cidadãos, assim como a terem um bom advogado e não serem obrigados a só ter de escolher entre o rol daqueles que se destacam no mercado por estarem inseridos em escritórios "famosos". É que há em S. Miguel, afirma aquele profissional, diversos advogados, muito bons, que "infelizmente tiveram de abandonar a actividade ou estão em vias de o fazer". Viveiros Raposo já fez chegar esta sua opinião, de várias formas, à Ordem dos Advogados. De acordo com o jurista, o problema é que dentro da própria Ordem existem entraves à respectiva resolução, por via normal. Além de haver quem consiga singrar apenas pelo facto de ter protecção familiar, há outra situação que, no entender de Viveiros Raposo, não abona a favor desta prestigiada actividade, que é o facto dos advogados poderem acumular cargos políticos. Porém, para mudar tudo isto é preciso alterar o estatuto. O que é complicado, "na medida em que a lei tem de ser debatida e aprovada na Assembleia da República, a qual, por sua vez, conta com um terço de advogados na sua composição. Como tal, não convém alterar a lei." O jurista micaelense denuncia, ainda, a existência no mercado açoriano de muitos escritórios que não dão rendimentos "mas são mantidos artificialmente pelas famílias à espera que os advogados que têm menos recursos acabem por abandonar. As famílias dominantes e os barões estão à espera que isto aconteça para açambarcarem o mercado. E distorcem completamente as regras do mesmo", afirma o nosso interlocutor. Por isso, "o futuro é incerto para todos", diz o advogado micaelense, que acrescenta ter conhecimento de "algumas situações muito graves e, infelizmente, de pessoas muito capazes, que estão muito mal e a deixar a profissão"
Profissão cresce exponencialmente
As conclusões do último inquérito aos advogados portugueses referem que o aumento do número de juristas tem sido, nas últimas décadas, uma constante na generalidade dos países ocidentais e que, em Portugal, desde 1991, se inscrevem como advogados, em média, 82% do número total de licenciados em Direito em cada ano. No que respeita à organização profissional, apurou-se que só 43% dos juristas portugueses dedicam totalmente a sua actividade profissional à advocacia liberal e ainda que, para 41% dos inquiridos, os ganhos na advocacia são marginais (até um quinto dos seus rendimentos). Também 32% declararam ter dificuldades em suportar os custos de funcionamento do escritório. Quando se analisam os resultados financeiros da actividade percebe-se rapidamente porquê: 66,5% recebem em média (antes de despesas e impostos) menos de 2.000 euros/mês e 42,5% menos de 1.000 euros.
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