O novo Código Penal prevê que os crimes de furto que envolvam um prejuízo inferior a uma unidade de conta, cerca de 96 euros, passem a depender de acusação particular, o que implica, por parte do lesado, um esforço acrescido para poder punir criminalmente o ladrão: a constituição de assistente no processo e o pagamento das respectivas custas judiciais, perto de 200 euros, ou seja, o dobro do prejuízo.
Esta alteração é vista pelo Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (SMMP) como uma “descriminalização encapotada” de um determinado leque de crimes, designadamente furtos, danos e burlas simples, como a subtracção de produtos de estabelecimentos.
“Quem será a pessoa que, relativamente ao furto de um telemóvel ou de uma carteira no valor de uma unidade de conta, manifestará o desejo de se constituir assistente quando terá de pagar duas unidades de conta e os honorários de um advogado?”, questionam os magistrados a propósito da transformação da generalidade dos crimes contra o património em crimes de natureza particular. “Em termos económicos, passa a ser irracional apresentar queixa, dados os valores em causa”, alerta o procurador António Ventinhas, considerando que esta medida é um obstáculo à perseguição dos agentes que praticam furtos e, por conseguinte, terá um impacto negativo no comércio e no turismo: “Os criminosos actuarão em conformidade. Sabem que vão roubar aos supermercados e que as pessoas não apresentam queixa. No fundo, o que vai acontecer é a descriminalização da criminalidade das bagatelas.
”Esta mesma posição consta do parecer divulgado pelo SMMP, que pede uma reflexão sobre esta matéria. “A descriminalização encapotada que a proposta pretende efectuar tem de ser devidamente equacionada, uma vez que poderá ter graves reflexos no aumento da pequena criminalidade”, lê-se no documento.
António Cluny, presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, também não tem dúvidas de que, “dados os valores em causa, as pessoas não se vão queixar”. “Isto vai afectar, por um lado, as pessoas que menos posses têm, a quem um pequeno furto faz diferença, e, por outro lado, os supermercados”, afirma o procurador. António Cluny admite a descriminalização em alguns casos, mas observa: “ Se se quer descriminalizar, tem de se encontrar alternativas, como contra-ordenações.”
Recorde-se que a revisão do Código Penal está em discussão na Assembleia da República, tal como a do Código de Processo Penal e a Mediação Penal, tendo já sido ouvidos os vários operadores judiciários. Os diplomas deverão ser aprovados até ao Verão.
"BAIXAR AS PENDÊNCIAS"
“O Governo não está preocupado com os ofendidos, mas apenas em baixar as pendências”, diz o procurador António Ventinhas, lembrando a apresentação dos números “extraordinários” da Justiça, na semana passada, que foi contestada por todos os operadores judiciários. O magistrado diz ainda que é preciso “alertar a população”, para quem a “criminalidade de bagatelas” é preocupante.
COMÉRCIO CONTRA PROPOSTA
José António Silva, presidente da Confederação do Comércio, diz que esta proposta de alteração do Código Penal – de transformar a generalidade dos crimes contra o património, que envolvam um valor inferior a uma unidade de conta, em crimes particulares – “vem na linha da descriminalização dos cheques de valor inferior a 150 euros” e critica a forma encontrada pelo Governo para aliviar os tribunais. “Temos alguma dificuldade em aceitar que se ganhe produtividade na Justiça à custa da despenalização de crimes”, afirmou o dirigente da organização empresarial. E acrescentou: “Estão a criar-se condições para que as pessoas não recorram à Justiça”.
Já António Rousseau, da Associação Portuguesa de Empresas de Distribuição (APED), remeteu para mais tarde uma posição sobre este assunto. O alerta para a “descriminalização encapotada” com a alteração prevista na revisão do Código Penal, consta do parecer emitido pelo Sindicato dos Magistrados do Ministério Público.
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